25.5.20

A Solidão da América Latina

A SOLIDÃO DA AMÉRICA LATINA

O discurso de Gabriel García Márquez ao receber o prêmio Nobel de literatura

Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso.
Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres.
Ele disse ter visto uma criatura desengonçada, com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo e pernas de veado, que relinchava como cavalo. Descreveu como o primeiro nativo encontrado na Patagônia se olhou no espelho, e em seguida, o impassível gigante, perdeu a razão, aterrorizado com sua própria imagem.
Este curto e fascinante livro, que já naquela época continha as sementes de nossos atuais romances, é sem dúvida o mais pungente relato da realidade nossa daquele tempo.
Os cronistas das Índias nos deixou outros incontáveis relatos. Eldorado, nossa terra ilusória e tão avidamente procurada, apareceu em numerosos mapas durante anos, deslocando-se de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos.
Em sua procura pela fonte da eterna juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou o norte do México por oito anos, numa iludida expedição cujos membros devoraram uns aos outros e, dos seiscentos que foram, apenas cinco voltaram.
Um dos muitos mistérios inimagináveis daquela época é o das onze mil mulas, cada uma carregando cinqüenta quilos de ouro, que um dia deixaram Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Depois disso, no tempo das colônias, galinhas vendidas em Cartagena de Índias eram criadas em terrenos de aluviões e em suas moelas eram encontradas pequenas pepitas de ouro.
A cobiça de ouro de nossos fundadores nos perseguiu até recentemente. No fim do último século [XIX], uma missão alemã, indicada para estudar a construção de uma ferrovia inter-oceânica, através do istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com uma condição: que os trilhos não fossem feitos com aço, que era raro na região, mas com ouro.
Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.
O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris.
Onze anos atrás [1971], o chileno Pablo Neruda, um dos brilhantes poetas de nosso tempo, iluminou este público com suas palavras. Desde então, os europeus de boa vontade – e às vezes aqueles de má vontade também – têm sido arrebatados, com cada vez mais força, pelas novidades fantásticas da América Latina, esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda.
Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo.
Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970.
Os desaparecidos pela repressão chegam a quase 220 mil. É como se ninguém soubesse onde foi parar a população inteira de Uppsala. Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares.
Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, seria o equivalente a um milhão e seiscentos mil mortes violentas em quatro anos.
Um milhão de pessoas abandonaram o Chile, um país com tradição de hospitalidade – ou seja, doze por cento da população. O Uruguai, pequenina nação de dois milhões e meio de habitantes, que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio um em cada cinco de seus cidadãos.
Desde 1979, a guerra civil de El Salvador vem produzindo quase um refugiado a cada vinte minutos. O país que se poderia criar com todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega.
Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.
Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.
E se estas dificuldades, cuja essência compartilhamos, nos atrasa, é compreensível que os talentos racionais desta parte do mundo, exaltados na contemplação de sua própria cultura, se encontrem sem meios apropriados de nos interpretar.
É simplesmente natural que eles insistam em nos medir com o mesmo bastão que medem a si mesmos, se esquecendo de que as intempéries da vida não são as mesmas para todos, e que a busca pela nossa própria identidade é tão árdua e sangrenta para nós quanto foi para eles.
A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários.
A venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado. Se ela recordasse simplesmente que Londres levou 300 anos para construir seu primeiro muro, e mais 300 para ter um bispo; que Roma labutou numa penumbra de incertezas por 20 séculos, até que um rei etrusco a fizesse entrar para a história; e que a pacífica Suíça de hoje, que nos deleita com seus leves queijos e simpáticos relógios, derramou o sangue da Europa como soldados mercenários, no final do século XVI. Mesmo no alto da Renascença, 12 mil lansquenetes pagos pelo exército imperial saqueou e devastou Roma e trespassou oito mil de seus habitantes na espada.
Não quero incorporar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de unir um casto norte a um sul apaixonado foram exaltados aqui, há 53 anos, por Thomas Mann. Mas realmente acredito que aqueles europeus esclarecidos que lutaram, inclusive aqui, por um lar mais justo e humano, pudesse nos ajudar muito melhor se reconsiderassem sua maneira der nos ver.
A solidariedade com nossos sonhos não vai nos fazer menos solitários, enquanto isso não for traduzido em atos concretos de apoio legítimo às pessoas que aceitam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.
A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra sem vontade própria; nem é meramente um pensamento desejoso que sua busca por independência e originalidade deva se tornar uma aspiração do Ocidente. No entanto, a expansão marítima que estreitou essa distância entre nossas Américas e a Europa parece, ao contrário, ter acentuado nosso distanciamento cultural.
Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais? Por que pensar que a justiça social perseguida pelos europeus progressistas aos seus próprios países não pode ser um objetivo da América Latina, com métodos diferentes em condições desiguais?
Não: as incomensuráveis violência e dor de nossa história são o resultado de antigas iniqüidades e amarguras caladas, e não uma conspiração tramada a três mil léguas de nossa casa.
Mas muitos líderes e intelectuais europeus têm pensado assim, com a infantilidade de seus antepassados que se esqueceram do proveitoso excesso de sua juventude, como se fosse impossível chegar a outro destino que não o de viver entre a cruz e a espada. Isto, meus amigos, é o tamanho exato de nossa solidão.
Apesar disso, à opressão, ao saque e abandono, respondemos com vida. Nem enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a vida tem sobre a morte. Uma vantagem que cresce e acelera: todo ano, há 74 milhões de nascimentos a mais do que mortes, número o suficiente de novas vidas para multiplicar, a cada ano, a população de Nova York sete vezes.
A maioria desses nascimentos ocorre em países de menos recursos – incluindo, claro, os da América Latina. Contraditoriamente, os países mais prósperos se realizaram acumulando poderes de destruição, com força o bastante para aniquilar, num total de cem vezes, não apenas todos os seres humanos que já existiram até hoje, mas também todos os seres vivos que um dia respiraram neste planeta infeliz.
Um dia como hoje, meu mestre William Faulkner disse: "Eu me recuso a aceitar o fim da humanidade". Não seria digno de mim estar num lugar em que ele esteve se eu não tivesse plena consciência de que a tragédia colossal que ele se recusou a reconhecer, 32 anos atrás, é agora, pela primeira vez desde o começo da humanidade, nada além de uma simples possibilidade científica.
Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.
Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.
Agradeço à Academia de Letras da Suécia por haver me distinguido com um prêmio que me coloca junto a muitos dos que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrante cotidiano deste delírio sem remédio e que é o ofício de escrever. Seus nomes e suas obras se apresentam hoje para mim como sombras tutelares, mas também com o compromisso, frequentemente sufocante, que se adquire com esta honra. Uma dura honra que neles sempre me pareceu de simples justiça, mas que em mim entendo como mais uma dessas lições com as quais o destino costuma nos surpreender, o que fazem mais evidente nossa condição de joguetes de um fato indecifrável, cuja única e desoladora recompensa costuma ser, na maioria das vezes, a incompreensão e o esquecimento.
Por isso é natural que eu me interrogasse, lá naquele bastidor secreto onde costumamos enfrentar-nos às verdades mais essenciais que conformam nossa identidade, a qual terá sido o sustento constante da minha obra, o que pode ter chamado atenção de forma tão comprometedora, desse tribunal de árbitros tão severos. Confesso sem falsas modéstias que não foi fácil encontrar a razão, mas quero crer que tenha sido a que eu gostaria. Quero crer, amigos, que esta é, uma vez mais, uma homenagem que é rendida à poesia. À poesia, por cuja virtude o inventário assustador das náuseas que o velho Homero enumerou em sua Ilíada está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua tristeza intemporal e alucinada. À poesia, que retém, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. À poesia, que tão milagrosa totalidade resgata a nossa América nas Alturas de Macchu Picchu, de Pablo Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenar nossos melhores sonhos sem saída. À poesia, enfim, a essa energia secreta da vida cotidiana, que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.
Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte. Entendo que o prêmio que acabo de receber, com toda humildade, é a consoladora revelação de que meu intento não foi em vão. É por isso que convido todos a brindar por aquilo que um grande poeta das nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia.
Muito obrigado.

25.4.18

Carta aos orientandos

Perdão se hoje fui rude, ríspido, seco, engraçado e/ou autoritário em demasia.
Ando dramático demais.

Falei mais do que devia. Como sempre! Mania deste professor, profissão, profecias... Me ajuda a escutar o que você tem a ensinar? Vai?! Ajuda!

Me pede para parar no meio da frase. Que a sentença eu não cumpra, não conclua. Faça que eu entenda. Me ensina, vai!
Tira a minha autoridade e traga a sua. Troca de papel comigo?
Leia os manuais, os compêndios, ensina os meus olhos a perceber os seus rastros no deserto. Que possa enxergar as suas bandeiras, batalhas inglórias do pensamento, seus labirintos, os monstros, a distração ou os devaneios enquanto você (re)inventa o seu mundo. Expressa. Conta. Apaga e reescreve o mundo na sua ação refletida com o coração. Estuda. Estude muito o seu mundo e depois me diz, mostra, conta-nos das tramas e urdiduras que ele tem.
Vai rapaz
Vai moça,
Traga o seu fôlego.
Ao verbo!




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Utopia!

Estamos necessitados de esperanças, de esperançarmos a continuidade da nossa história.
Se a moça ao lado, aquela dos símbolos e dos significados, diz o que diz do ponto de vista do ódio, lava as mãos dela e reclama uma realidade projetada por sinais dados pelo mercado e não pela utopia, é hora de retirada!




Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

Na casa

*
Na asa

*
Na casa dos sete espelhos
Quantas faces
a face tem?
Rubra
Opaca
Neve
Metal frio infinito
Laca
Composto
Antiga trinca,
Uma rachadura.





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Eckhart

Os Portadores da Frequência

O movimento exterior para a forma não se expressa com igual intensidade em todas as pessoas. Algumas sentem um forte ímpeto para construir, para criar, para se envolverem, para alcançar determinados fins, para criar impacto no mundo. Se forem inconscientes, o seu ego irá obviamente dominá-las e usar a energia do ciclo exterior em proveito próprio. Contudo, isto também reduz substancialmente o fluxo de energia criativa disponível para elas, que têm assim uma necessidade cada vez maior de confiar nos seus «esforços» para obterem o que querem. Se forem conscientes, essas pessoas, nas quais o movimento para o exterior é forte, serão altamente criativas. Outras, após a expansão natural implícita ao crescimento chegar ao fim, levam uma existência exteriormente corriqueira, aparentemente mais passiva e sem grandes acontecimentos.

São pessoas mais introspetivas por natureza e, para elas, o movimento exterior para a forma é mínimo. Preferem regressar a casa do que sair. Não têm qualquer desejo de se envolver intensamente em algo nem mudar o mundo. Se tiverem ambições, geralmente não vão além de encontrar algo para fazer que lhes dê um certo grau de independência. Algumas acham difícil adaptar-se a este mundo. Algumas têm a sorte de encontrar um cantinho protetor onde podem levar uma vida relativamente abrigada, um emprego que lhes proporciona um salário regular ou um pequeno negócio seu. Outras podem sentir-se impelidas a viver numa comunidade espiritual ou num mosteiro. Outras ainda podem tornar-se delinquentes e viver à margem de uma sociedade com a qual sentem ter muito pouco em comum. Algumas optam pelas drogas porque consideram a vida neste mundo demasiado dolorosa. Outras acabam por se tornar curadores ou professores espirituais, ou seja, professores do Ser.

Noutras eras, talvez lhes tivessem chamado contemplativos. Aparentemente, não há lugar para estas pessoas na nossa civilização contemporânea. Porém no novo mundo que está a surgir, o papel delas é tão vital como o dos criadores, dos empreendedores, dos reformadores. A sua função é fixar a frequência da nova consciência neste planeta. Eu chamo-lhes portadores da frequência. Estão aqui para gerar consciência através das atividades da vida rotineira, através das suas interações com os outros ou simplesmente através do facto de «serem».

Desta forma, dotam aquilo que é aparentemente insignificante de um profundo significado. A sua missão é trazer o silêncio do espaço a este mundo, estando absolutamente presentes em tudo o que fazem. Há consciência e, por conseguinte, qualidade em tudo o que fazem, mesmo na tarefa mais simples. O seu propósito é fazer tudo de uma forma sagrada. Uma vez que cada ser humano é parte integrante da consciência humana coletiva, estas pessoas afetam o mundo de forma muito mais profunda do que é visível à superfície das suas vidas.

Eckhart Tolle (Um Novo Mundo, pág. 247)




Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

19.4.17



🌷
A S A 
P R Ó P R I A,
V O O
C  O M P A R T I L H A D O 

Tempo de asas, de voar sem culpas e medos
Sonhar!!!
Levantar com o sol interior
Amanhecer-se todo dia
Inaugurar-se ao mesmo tempo em que descobre a natureza que nos cria e com a realidade que inventamos dia a dia.
Criar-se? Continuar?
Vai que vai,
por aí,
por aqui,
por ali.
Vamos?

"Enviado do meu mundo além do mu(n)do, não (i)mundo)"

5.5.15

Rosas

Ela disse-me que seria assim. Eu ri.
Ela falou-me das lágrimas. E eu ri.
E contou-me ela das distâncias incomensuráveis, das ausências irremediáveis. E eu, tolo, ainda ri-me.
E das saudades desmedidas dela eu, semente, ramo novo, folha sem flor, também ri.
E agora desabrochadas estas rosas do meu pranto, ela riso desabrido no leito eterno, suas pétalas perfumam os meus olhos. E eu rio com o roseiral que amanheceu em perfumes raros. Um rio de rosas cheirando às lágrimas a soar suspiros de saudades.

31.8.13

A reinvenção do amor - Alain Badiou


- Você [Alain Badiou] é um dos poucos filósofos contemporâneos que introduziu em sua reflexão algo único, quer dizer o amor. Você repete freqüentemente que é preciso reinventar o amor. Como se faz isso?

- O amor é um gesto muito forte porque significa que é necessário aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige um tipo de confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo isto é possível, isto nos prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o amor por um tipo de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica, etc. Então, o amor deve ser reinventado para defendê-lo. O amor deve reafirmar seu valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como nunca o fez antes. Não se deve deixar que o amor seja domesticado pela sociedade atual - que sempre busca domesticá-lo-. Em outros tempos, as sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo matrimônio e a família. Hoje se busca domesticar o amor com uma mescla de pornografia livre e de contrato financeiro. Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e afastá-lo dessas ameaças. E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve afastar-se da potência do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano ativo e desinteressado há um combate para libertá-lo dos interesses.


16.4.13

Homenagem (ou hino) ao amor

Meus pais eram sábios. E eles demonstraram isto de muitos modos.
Ela partiu no último 15 de fevereiro de modo natural tão espontâneo quanto é nascer.
Ele encantou-se há pouco e não mais chorará a ausência dela. Neste 15 de abril ele adentra as mansões da alma.
Sabedoria deles mostrou-se em atos cotidianos, de um para com o outro e conosco que os rodeamos. Fosse em silêncio, na dedica atenção, nos cuidados, acolhimento e na compreensão que ambos, cada qual à maneira pessoal, gentil e alegre ou com rigor prestaram a filhos, filhas, netas e netos, bisnetas e bisnetos e aos achegados.
Viveram casados e juntos por 68 anos. Exercitaram assim também a grande sabedoria deles.
No final da longa jornada, reconhecemos que mantiveram-se unidos e também aos familiares. Mais do que manter próximos os filhos a eles, fomos nós, os próprios, que tivemos o privilégio e a honra de compartilhar da existência plena deles. E de a eles dedicar a atenção e os cuidados para que a vida continuasse íntegra e alegre, apesar das dificuldades que são emprestadas com o avanço do tempo e idade.
As dores do viver são inevitáveis. E eles sabiam disto e nos ensinaram a resignada compreensão de que os ciclos de dias e noites contemplam o infinito. Que o sol, as estrelas e o horizonte à distância, inalcançáveis, estão presentes e são soberanos, na determinação de tempo e existência nossos. Dia e a noite a completar o ciclo do viver, sem interrupção, e esta é a única certeza de continuidade que podemos ter.
E não bastava viver e contemplar a passagem do tempo. Eles nos emprestavam olhos para que enxergássemos o horizonte à distância. Então era o instante em que nos falavam das perspectivas do viver, ou, diante das cores de flores, no jardim que sempre cultivaram, apontavam os milagres de uma existência mais bonita e melhor, para além do banal e opaco cotidiano de nossas lidas diárias. Teciam sua sabedoria em simplicidade, fosse ao fazer fio nas facas, amolar a navalha, a escanhoar a face, no prosear do crochê, ao café e à mesa sempre postos, a dedicação preciosíssima deles, sempre prontos a receber todos com palavras que tocavam sentidos e sentimentos.
Privilégio aprendermos que para ela entrar num carro, quem sempre abriria a porta era ele. Mesmo depois de 68 anos de convivência diária e incansavelmente compreensiva e carinhosa, isto se repetia, não um ato mecânico, mas deferência, respeito e delicadeza. A sabedoria revela-se na cumplicidade e parceria deles em longa existência, insistência, resistência que não os endureceu, mas lhes amaciou a voz das demandas, tornou-as acalantos. De certo, a sabedoria lhes veio de muitas fontes, em experiências e com as tantas vivências compartilhadas. Feita de laços, vínculos e a entrega que pareceram sempre sabedoria, requintes de uma existência plena de sinceridade e sem meias palavras, mas também calada e que sabia fazer calar diante do milagre da vida, justiça e alegria.
A sabedoria deles faz-nos compreender alianças, acordos, conversações, compromissos, continência, alimentos que nunca nos faltaram à mesa e nos protegem e ensinam
. Sabedoria que é, portanto, Grande Amor.

Minha gratidão, meu respeito e amor, Alice Monteiro e Antonio Rodrigues 

Amanhã ser


"A paixão passa em brancas nuvens", foi o que ele leu nas entrelinhas, olhos navegantes, em nuvens, no céu dos seus óculos.
Aprendeu tardiamente as figuras e as casas do zodíaco, h
oróscopo diário, previsões das meias paixões coloridas para os dias de chuva e sol. Viver era prevenir-se dos brinquedos e da jocosidade do acaso 
Ele nunca andava com os pés no chão, tendo pés de vento entre o corpo e os pensamentos, cabeça nas nuvens, a olhar cego para a luz, maravilhado com o brilho do sol nas cores de nuvens e em outros infinitos. E não viu o amor passar, lavar, cozinhar os seus dias e a coser os retalhos do tempo sob os passos dos seus três filhos legítimos e dos tantos que foram por ela agregados àquela mesa. Quando amar era já lembrança, apenas um vago projeto de futuro, um plano, um sentimento na memória, ele apaixonou-se pelo tango.
Ele, o ardor, noitecia com pernas tibias mesmo sem jamais amadurecer, bailando o tango até o dia da sua morte.
Na lápide ele pediu o escrito: sem saber e desde sempre foi um tango trágico o que vivi, por isto eu bailava ao vento.

24.3.13

Domingueira

Hoje não. Só amanhã. Hoje vou sentar à sombra, acompanhar com olhos vagos, feito abelhas, ver crescer a flor da laranjeira, do pêssego e saber segredos do vento. Hoje eu vou ficar com os pés descalçados, sozinhos, digo, minto, ficaremos eu e meus pés nus com as miudezas que fazem todo sentido, umbigo, olhos, as unhas dos polegares presos ao avental, 13 ovos, farinha, fermento e sal, forno de palavras e inventos para o outono que veio às janelas, colorir o dia de eu mesmo. Isto, fico hoje comigo e o mundo das proximidades que me fazem ir além, sair por ai sem cotpo, sem voz, palavra ou necessidade ou finalidade. Quem sabe eu vá ao encontro de manteigas, palhaços, risadas, entrarei no escuro da sala do cinema para não dizer olás, nem adeus. Os domingos deveriam vir mais, vir a cada dia,, todos os dias domingos em mim.