31.8.13

A reinvenção do amor - Alain Badiou


- Você [Alain Badiou] é um dos poucos filósofos contemporâneos que introduziu em sua reflexão algo único, quer dizer o amor. Você repete freqüentemente que é preciso reinventar o amor. Como se faz isso?

- O amor é um gesto muito forte porque significa que é necessário aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige um tipo de confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo isto é possível, isto nos prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o amor por um tipo de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica, etc. Então, o amor deve ser reinventado para defendê-lo. O amor deve reafirmar seu valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como nunca o fez antes. Não se deve deixar que o amor seja domesticado pela sociedade atual - que sempre busca domesticá-lo-. Em outros tempos, as sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo matrimônio e a família. Hoje se busca domesticar o amor com uma mescla de pornografia livre e de contrato financeiro. Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e afastá-lo dessas ameaças. E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve afastar-se da potência do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano ativo e desinteressado há um combate para libertá-lo dos interesses.


16.4.13

Homenagem (ou hino) ao amor

Meus pais eram sábios. E eles demonstraram isto de muitos modos.
Ela partiu no último 15 de fevereiro de modo natural tão espontâneo quanto é nascer.
Ele encantou-se há pouco e não mais chorará a ausência dela. Neste 15 de abril ele adentra as mansões da alma.
Sabedoria deles mostrou-se em atos cotidianos, de um para com o outro e conosco que os rodeamos. Fosse em silêncio, na dedica atenção, nos cuidados, acolhimento e na compreensão que ambos, cada qual à maneira pessoal, gentil e alegre ou com rigor prestaram a filhos, filhas, netas e netos, bisnetas e bisnetos e aos achegados.
Viveram casados e juntos por 68 anos. Exercitaram assim também a grande sabedoria deles.
No final da longa jornada, reconhecemos que mantiveram-se unidos e também aos familiares. Mais do que manter próximos os filhos a eles, fomos nós, os próprios, que tivemos o privilégio e a honra de compartilhar da existência plena deles. E de a eles dedicar a atenção e os cuidados para que a vida continuasse íntegra e alegre, apesar das dificuldades que são emprestadas com o avanço do tempo e idade.
As dores do viver são inevitáveis. E eles sabiam disto e nos ensinaram a resignada compreensão de que os ciclos de dias e noites contemplam o infinito. Que o sol, as estrelas e o horizonte à distância, inalcançáveis, estão presentes e são soberanos, na determinação de tempo e existência nossos. Dia e a noite a completar o ciclo do viver, sem interrupção, e esta é a única certeza de continuidade que podemos ter.
E não bastava viver e contemplar a passagem do tempo. Eles nos emprestavam olhos para que enxergássemos o horizonte à distância. Então era o instante em que nos falavam das perspectivas do viver, ou, diante das cores de flores, no jardim que sempre cultivaram, apontavam os milagres de uma existência mais bonita e melhor, para além do banal e opaco cotidiano de nossas lidas diárias. Teciam sua sabedoria em simplicidade, fosse ao fazer fio nas facas, amolar a navalha, a escanhoar a face, no prosear do crochê, ao café e à mesa sempre postos, a dedicação preciosíssima deles, sempre prontos a receber todos com palavras que tocavam sentidos e sentimentos.
Privilégio aprendermos que para ela entrar num carro, quem sempre abriria a porta era ele. Mesmo depois de 68 anos de convivência diária e incansavelmente compreensiva e carinhosa, isto se repetia, não um ato mecânico, mas deferência, respeito e delicadeza. A sabedoria revela-se na cumplicidade e parceria deles em longa existência, insistência, resistência que não os endureceu, mas lhes amaciou a voz das demandas, tornou-as acalantos. De certo, a sabedoria lhes veio de muitas fontes, em experiências e com as tantas vivências compartilhadas. Feita de laços, vínculos e a entrega que pareceram sempre sabedoria, requintes de uma existência plena de sinceridade e sem meias palavras, mas também calada e que sabia fazer calar diante do milagre da vida, justiça e alegria.
A sabedoria deles faz-nos compreender alianças, acordos, conversações, compromissos, continência, alimentos que nunca nos faltaram à mesa e nos protegem e ensinam
. Sabedoria que é, portanto, Grande Amor.

Minha gratidão, meu respeito e amor, Alice Monteiro e Antonio Rodrigues 

Amanhã ser


"A paixão passa em brancas nuvens", foi o que ele leu nas entrelinhas, olhos navegantes, em nuvens, no céu dos seus óculos.
Aprendeu tardiamente as figuras e as casas do zodíaco, h
oróscopo diário, previsões das meias paixões coloridas para os dias de chuva e sol. Viver era prevenir-se dos brinquedos e da jocosidade do acaso 
Ele nunca andava com os pés no chão, tendo pés de vento entre o corpo e os pensamentos, cabeça nas nuvens, a olhar cego para a luz, maravilhado com o brilho do sol nas cores de nuvens e em outros infinitos. E não viu o amor passar, lavar, cozinhar os seus dias e a coser os retalhos do tempo sob os passos dos seus três filhos legítimos e dos tantos que foram por ela agregados àquela mesa. Quando amar era já lembrança, apenas um vago projeto de futuro, um plano, um sentimento na memória, ele apaixonou-se pelo tango.
Ele, o ardor, noitecia com pernas tibias mesmo sem jamais amadurecer, bailando o tango até o dia da sua morte.
Na lápide ele pediu o escrito: sem saber e desde sempre foi um tango trágico o que vivi, por isto eu bailava ao vento.

24.3.13

Domingueira

Hoje não. Só amanhã. Hoje vou sentar à sombra, acompanhar com olhos vagos, feito abelhas, ver crescer a flor da laranjeira, do pêssego e saber segredos do vento. Hoje eu vou ficar com os pés descalçados, sozinhos, digo, minto, ficaremos eu e meus pés nus com as miudezas que fazem todo sentido, umbigo, olhos, as unhas dos polegares presos ao avental, 13 ovos, farinha, fermento e sal, forno de palavras e inventos para o outono que veio às janelas, colorir o dia de eu mesmo. Isto, fico hoje comigo e o mundo das proximidades que me fazem ir além, sair por ai sem cotpo, sem voz, palavra ou necessidade ou finalidade. Quem sabe eu vá ao encontro de manteigas, palhaços, risadas, entrarei no escuro da sala do cinema para não dizer olás, nem adeus. Os domingos deveriam vir mais, vir a cada dia,, todos os dias domingos em mim.

10.2.13

Estilhaço


Achei um caco solto sobre o tapete da biblioteca.

Busquei em toda parte o espaço vago de onde ele caíra. Encaixou-se-me no peito.

Nem eu sabia deste estilhaço, um caco perdido, agora encontrado.

Parte-se o coração dos vivos tantas vezes.

Sabia que ele funcionava trincado, mas não sem um pedaço.