29.5.07

Tecer Teias

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Aranhas de patas tintadas negras tecem garatujas no lenço opalino do papel. Rápidas elas patejam sem que seu movimento se perceba. Adiante se adivinham rastros, trilhas, ramas a desenhar tessituras em palavras de fibras furta-cor. As páginas correm soltas entre os dedos. Os olhos deslizam aqui e ali, avançam e param. A dança das aranhas emprestam ao leitor seu ritmo, seu gosto, sua tessitura de sabere sedozos.

Fibrila o desejo do leitor: asa

Ariadnes em marchas sincopadas, arranjam hordas de letras alinhadas entre margens de sentidos. Invisíveis, visíveis, coagulam as palavras em similaridades e contigüidadesas mais estranhas às letras que se tornam palavras. E avançam, texto e leitor, entre finos rabiscos e abismos de sentidos. As margens invisíveis ordenam traço, letra, espaço... E rumo ao sem fim de léxico, sema, signos, metáforas e topoi. Alfarrábios de civilização, rolos e maços em estantes fechadas, portas para um mundo que existe sob as patas das aranhas gráficas. Surpresas em textos, aventuras em linhas, mistérios em garatujas. São amorosas as aranhas gráficas. Há tanta vida entre as teias delas. E não haverá trégua, acomoda-se o adiantado leitor. Ler!

Arma-se a linguagem: asa de mosca

Pela testa do leitor escorre lenta uma gota e outra de suor. As aranhas correm rápidas e dispersam-se. Correm retas novas linhas, desarranjados caminhos. As marcas e as patas delas esbarram sem sentido nos limites da página. Manchas escorrem grossas, borram-se as letras margem abaixo. Um assopro, um suspiro e mais outro. Sem socorro, as letras estão borradas. Sem palavras! Uma ilha negra brota no centro dos alinhamentos. Manchas e borrões em ilhas de desordem entranhadas nas fibras da seda opaca. Uma e outra gota de suor bastou, fez-se noite entre as letras. Garatujas ébrias e a civilização do texto posta em grossas nuvens de borrões. O movimento de pensar o mundo em letras, não mais se lê, nem palavras, agora é trilha de incertezas. Em meio ao cansaço e o suor desta noite perde-se todo sentido. Sem os fios das letras e sentidos, a memória de Aridne está presa num labirinto sem muros.

O devaneio opaco: asa de mosca na filigrana

Gotas cedem ao calor da lâmpada que pende sobre o papel e o aquece. Acolhidas nas rugas desabrochadas na trama porosa, por hora, marcadas de rastros, de certo as gotas secam. Vapor. Borrão algum deixa de ceder à luminosidade. A luz seduz!
As letras não se cansam de estar no mundo para revelá-lo? Quem saberá? As letras são ilhas de solidão. Ler e ser o mundo dito, narrado ou descrito, restritivo este espaço da página que o aprisiona entre capas. A leitura macula o tempo da língua viva, desbasta as coisas em letras, faz do mundo palavra e espírito. Que se leia o livro! O leitor abandona o vão esforço de jogar qualquer luz-compreensão e dissolver as manchas do texto borrado.

A vertigem dos olhos: asa de mosca na filigrana de teias

Na face borrada, sumidouro das letras, há estranhas linhas sem margem precisa. Manchas de cor acinzentada e negra cedem ao translúcido que surge sob o calor da luz. Abruptas ilhas de marcas d’água desenham-se no papel em vergões e cicatrizes do movimento do suor escorrido. Entrementes o tempo passe num átimo, sob o calor da luz germinam uns finos veios de cristais na página suada. Iridescentes brotam aos olhos as fadigas do pensar induzido pelas palavras. São uns cristais bem toscos, ínfimos nas ilhas de suor ressecado. Umas luzes falhas, umas faltas a ressecar as malha e lascas e gomas deste papel. Sempre haverá o que ler e ver. Retorna o leitor à bancada. Tentativa renovada de sentidos para estes cartões de manchas: singular livro, testes de Rorschach.



A vertigem dos olhos: asa de mosca na filigrana de teias furta-cor

A seguir, adiante! Estranhas figuras parecem dar nova mira ao leitor. São marcas de olhos enegrecidos em sombras a margear e centralizar uns focos nas ilhas. Reluzente imaginação a deste leitor. Olhos fatigados da imprecisa brancura da seda opaca e das letras. Adivinham-se as miríades de formas translúcidas. É possível ler tudo e todos. Um recurso último haverá compreensão. Uns cem números de pequenas luzes aparecem. Rastros da cristalina imaginação. E rebrilham também estas luzes numas falas, numas tentativas. Quantas luzes faz o pensar alheio, não é!? Mostra-se o papel: um mar de insuspeitadas e esboroadas letras. Possibilidade, gravidez de formas cinza e uns poucos cristais.

Asa de mosca na filigrana das teias furta-cor

Quisera eu, neste instante, uma outra idéia pudesse vir em meu socorro. Além de escrever ou de ler, tiraria este leitor da faina de compreender. Gostaria de apenas dizer-lhe para ver. Faria, quiçá, brotar mais que a mera descrição dos laços e riscos disformes dos diamantes lapidados pelo seu suor de cansaços.
Ah, amigo leitor, onde era opalino, se eu pudesse, faria nascer pra você um poema, um verso, um quadro de imagens.
Não viesse eu destro apenas nas limas, tesouras, agulhas, um modesto perseguidor de rastros das aranhas alheias... E mais disciplinado eu fosse, quiçá mais amigo, quem sabe, diria a você de viva voz umas rimas a sovar esta experiência incrível que é ler e dizer.
Umas falas, uns diálogos presentes no mundo, algo para além das páginas. Não fosse isto, tal imagem nascente daquela ilha, das formas luminosas dela, do suor... Eu então tentaria novamente escorregar patas de aranha da garganta em formas afeitas mais à alheia imaginação... Quiçá! Quiçá!... Quem dera quimeras!
Tivesse eu um poema à mão, na memória, então faria disto aqui mais que um ponto de vista. Traria as armadilhas da língua em verbos postos no ar. Seriam saraivadas de estímulos para novas danças de patas tintadas a rebrilhar no espaço de um círculo de amigos. E então recontaríamos nossas histórias. Faríamos nossas fábulas.
Quem sabe, saltaríamos prosas, poemas ou ainda alguns verbos cantados. Realinharíamos as trilhas das fastidiosas aranhas em patas mais bem tintadas apenas para registrar estradas, mapas dos nossos encontros. Grafaríamos umas tantas tramas de desatinos, histórias para ver de novo os amigos, na funda das filigranas de teias, junto à carne, ossos e sangue das palavras-letras de novos e melhores leitores.

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Um afago ao Leodmar, leitor atento, pelo empréstimo de seus bons olhos

28.5.07

INTERVALO





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Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado
-Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?
...Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca
-A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.







Fernando Pessoa

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