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"maria-sem-vergonha". Jericoacoara-julho 2007
O almoço de aeroporto não me cai bem. Sabor de nada na boca. Vazio fundo no estômago. Comida sabor rotas aéreas. A língua fica com gosto de vento. Caminho sem rumo entre as paredes que separam nada de lugar algum. Nenhum interesse em particular. Corredores para se andar devagar, para vagar. A espera a esperar... Em qualquer parte dos aeroportos não é difícil encontrar infinitos... corredores infinitos. Cresce o desejo de retornar e rever uma vez mais o grande mar, as ondas. Apenas reclamo meu direito de repousar... Logo mais... Anseio retornar aqui e ali, em cada um dos corredores, de volta aos braços e abraços... A cidade das férias cheira ranço, mijo de rato, barata, antigos e seus guardados. Veio voraz, vindo do book store, um sopro que lembrou o sabor de viver (reviver). Trouxe sangue de volta à língua, quase vomito, e book store -- nome estranho para uma casa de repouso para livros que esperam... Olham-me os livros. A estante milimétrica desarruma meus olhos. Entorno a cabeça de um lado a outro, e de novo, e de novo... eu enjôo. Poeira de cansaços no colo. Disfarça-se ela, ali também, a poeira sobre o verniz dos analfabetos que insistiram em arranjar os livros sabe-se lá em qual ordenação. Alfabetizou-se o livreiro numa mistura da socioeconomia com a política e a poesia. Book store. Entendi! Volto ao enjôo e ao sabor de sangue na boca: A Fúria da Beleza é que sussurra. Ah! É a tal Elisa Lucinda que me gritou algo ali, entre a auto-ajuda e os demais desarranjos dessas letras entre capas à espera de leitores que se atrasam. Sorri uma maria-sem-vergonha, desabrida, na contracapa. Ela é rosa e lavada de luzes solares, olha-me, a poeta, atenta e distraída, na contracapa, num sorriso negro franco e maroto. É madura a menina poeta (ou seria poetisa, que é nome bem estranho... asas ao meu cansaço. Desculpe-me o leitor (a)). E ela sorri. Ri-se, será do que? Para que? Entre as páginas que ouso abrir, as palavras dela, meus deuses!, elas saltam e gemem. No título do livro, guardadas entre as lustrosas capas, logo na primeira folheada, mostram-me ao que veio e qual e tanta é esta fúria. Maria-sem-vergonha lambeu-me os olhos e ouvidos (sim, que eu leio também com os ouvidos). Contou-me em poucas palavras letradas das surpresas que se mostram nos mistérios que eu mesmo vi e li na vidoca destas férias. Uma certa distração, distrai-mento da alma ao encontrar-me com os Hibiscos e a maresia. E foi assim, de letra em letra, na vida, nesta leitura e nesta ou em outra viagem que eu revi ali, nas letras da Lucinda este amor que transborda e vê nos olhas desta moça, na foto da mesma flor, feita então na longa praia, mais que a forma da flor ou dos olhos dela. Mais atenção! Eu retorno. Enfio-me nas páginas para vasculhar mais letras e segredos nelas. Reencontro as paisagens solares, soturnas e as maresias, todas minhas, adiantadas nesta poesia. Não consigo parar. Amigos já diziam: leia-a!, parece, você... bem, gostaria. Então deixei repousar. E veio agora. Ela está toda enfeitada de flores para este nosso encontro, nas apresentações, adesivos da infância aos 40-44, Lya Luft na folha de rosto, outros decalques, distrações, desenhos a lápis, subtítulo imprevisível: "o 1º livro de adultos para colorir!" Adoro a acentuação! Admiro! Ah, memória... O gosto de céu na língua cortou-se em definitivo. Adentro páginas. Nélida Piñon, antes, adverte: "linguagem em chamas", "palavra plástica e ávida", "despudor e palavra". Muitas e tantas palavras com sabor. Minha caixa de lápis de cor. Recordo e imagino à mão agora. Colori cada uma destas palavras. Leio no vôo. Leio no vento. Lento que é pra não acabar logo o prazer. Ler é quase uma tortura, dessas que se fazem os amantes, prolongando prazer e gozo quase ao infinito que é morrer num orgasmo... De capa a capa, meus lápis, meus óculos, a paisagem solar laranja e roxa do sol que faz sonhos nas nuvens. Falta-me apenas um pedaço, uma porção de nuvem azul, no final desta tarde, sob sol espetáculo. Então deixei este, uma porção, para melhor saborear no reencontro apaixonado e agradecido por haver que faz palavra para os olhos. Agradeço Lucinda e à língua e à pele dela, pelo milagre da redenção do meu gosto, meu prazer. Indescritível sensação esta, não particular, sim de tantos outros leitores, que as letras dela, numa fração, conceituem o que é desde sempre buscado. Encontro-me descrito à justa saia do bom português, vestido nas pernas com a teoria estética da Lucinda, feita da melhor maneira: obra de arte despudorada, na poética em gozo de explícitas letras. É fúria esta moça, a Lucinda, a Fúria da Elisa. A sua beleza em letras é boca de deus, um theos-oros. E eu, então, agradeço e presenteio com um poema dela..
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Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um gole.
Um bote nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa e uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.
Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que eu vi era pancada,
era baque e era bonito demais!
penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é desta flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.
Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã,
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo que e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se agüenta mais,
sabe como é?
Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!
Noite clara, 8 de abril de 2003
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