2.6.10

Requiem

*


No passamento dos poetas as praças de todas as vilas e cidades amanheceriam floridas e festejariamos a vida que eles nos emprestaram ou deram ou injetaram, não fosse tão curta a nossa memória, mestra na arte de diariamente nos esmaecer.


Photo:
Mothman by PanZerkorps


*




31.5.10

Carta de Amor

*

Esta carta já teve destinatário certo, depois ficou perdida entre endereços complexos, gavetas, até ser perturbada demais para qualquer leitura ou destinatário. E ela fadou-se ao extravio.
Eu a escrevi faz muito, entre o final do século passado e o começo deste. Hoje torno os olhos ao passado e a releio e a reescrevo. Descubro-me um outro, escondido num ponto e noutro à mostra... aqui e ali em mim diferem emoções e vagam as memórias.
Esta carta sempre esteve dirigida a mim mesmo, posto que o amor ao qual nela me refiro, fui eu quem fez, sentiu, erigiu... embora fosse destinado a outrem. Se houvesse um outro título, mais apropriado, seria: carta ao amor próprio ou evocação a este.

Abri-la e a destinar para que você a receba, atualiza a minha alegria de estar encantado pelos dias em que eu escrevia cartas para mim a inventar o que seria o mais além.

É isto!


Você me disse que a última carta enviada demorou mais de uma semana para chegar às suas mãos, então eu espero que já estejamos juntos quando receber esta. Os assuntos aqui tratados, em parte, já terão expirado. As cartas não ressoam como quando as escrevemos. Limites da linguagem. O que me interessa é o destinatário e a proveniência desta escritura, mais que a carta em si ou propriamente tratar assuntos.


Tenho vivido um tempo desproporcionalmente veloz. A cidade me proporciona isto em situações variadas. O meu trabalho também demanda voracidades. A lentidão do tempo eu percebo quando ele constitui o espaço intransponível. O tempo é a barreira, o espaço da distância, a nossa separação. O tempo veloz não se distende, mas é marcado pela nossa sempre contingente reunião: um encontro sempre momentâneo. Nos nossos encontros eu sinto o tempo se alongar. Ele se limita, assim, a um tempo de calendário. Já, já, eu chego.


O que eu poderia contar-lhe que você não saiba? Digo (escrevo) o que se tem passado comigo, e serão novas? Nunca as cartas de amor dizem tudo o que delas esperamos. Nem é o que se possa escrever o que se gostaria de ler. Cartas de amor são anúncios de si, motivações do reencontro.


Eu já lhe disse do contínuo diálogo silencioso que estabeleço contigo, no qual reconto o que faz a tessitura dos meus dias. O que me move a escrever, contar do desconexo tempo entre desfazer-me em tramas de horas, fabricar o espaço de aproximação, estrutura essas trilhas e essas pontes nas quais eu me reconheço.


Eu grafo o tempo que nada diz, mas me reconstrói. Então, é este o movimento mais caro e estimulante. São pontes que eu tenho encontrado aqui, estando à espera.


Não me basta escrever só por escrever. Eu lhe escrevo para me escrever. Não é para inscrever-me na pele da memória e durar em você. São outros os meus intentos.


Cartas não são ocasiões para a lembrança da pele dos amantes. É a recriação que eu faço do outro, de um nós e das tramas que teço o que me interessa deveras. Assim me lanço às cegas nesta escritura da ausência. E escrever passa a ser, não estar ou (re)contar, de certa maneira é ser ao lado de quem falta: eu me reinvento e eu lhe invento.


Declaro-me mais uma vez perdido no labirinto de palavras (pás que lavram, ouso em letras!). O discurso mais que tecido por letras, frases, orações, é feito de pausas, afeito e afeto em pausas.


As tramas das minhas intenções e propósitos suplantam qualquer linguagem. Inventar e inverter ou articular fogem. Os caminhos me levam até aí, seu lugar que é um vir a mim. O centro da linguagem, a descrição do tempo e a ausência: um devir.


Tarefas de hoje: Lavrar escrituras, mais ou menos como construir um universo de referências para o inominável, invisível, intocável que eu sinto e sei abaixo da pele. Não são veias. Serão vias!


Eu não estou aqui, vou em direção ao que me faz (ser eu). Encontro-me na falta a cada dia e a cada minuto.


Parece-me que o tempo de distâncias, embora concreto, não tem fim, O tempo também não teve começo. Então, já sem tempo, já, já eu chego aí.


Os meus suspiros depositam a inquietude e a impossibilidade nas esperanças. Um diálogo contínuo, a ordem de tempo e de espaço eu suspiro, nas pausas. Tanto ar quantas são as ausências que sinto em mim, eu inspiro. Olho à rua as ausência, débeis vagamos em olhares rasos e saudades.


Sem dizer ou escutar palavras (jocosas ou não), eu gostaria de sentir no hálito do outro, o silêncio arfar entre as costelas. Porque não, mesmo a pausa e a ausência suspiradas, conseguem transportar para além o querer e o sentir? Para além? Acerto as contas com o que quero, fazendo-me verbo, dizendo-me aqui e ali, como for possível. Por enquanto: já, já!


A sua presença (ausente) acomete e atordoa o meu "estar distante". Tão próximo e cheio de sentidos que fazem fugir quaisquer palavras que possam expressar o meu (nosso) desejo.


As palavras nunca bastam, por que somos feitos de outros e tantos movimentos.


Distraído... Destraído... Realiado... Aliado... Nem o trabalho, nem os acontecimentos e afetos que me assaltam dia e noite. Estou cego ou vejo?


Entre espaços que percebo, há os que me concebem e vãos. Crio palavras tal ervas aqui e ali. Retorno à metáfora e reescrevo. Lembro-me de aparar minhas penas e pesares na forma de letras.


Mais e mais desejo estar aí, no interstício, no subjetivo, naquilo que vejo no espelho. O espaço de ausências plenas que, apesar de presente, está fora de si. E eu não o tenho. Não há um Si ou o Mesmo no vazio: eu-em-mim: Si, si! Os pontos são de referência, tal os espaços refletidos na superfície de vidro e metal que eu espelho.


Alguém disse (foi o Deleuze) que o mais profundo que se pode ir, no outro, é a superfície da pele, nas curvas e reentrâncias dela. Ele não disse, perguntou: quanto a pele pode ser permeável e elástica, quanto ela suporta e quanto ela sustenta?


Das poucas coisas que percebo a melhor é a nossa demora.


Sinto a falta como uma presença e a presença como uma falta que reciprocamente não se preenchem. E, mesmo com estes esforços das minhas lavras, aqui e aí, jamais o tempo será tão veloz quanto agora quando o estendo. Mesmo assim, insisto em continuar e nos escrever para ver se reúno novamente uns estilhaços meus, uns cansaços que se espalham nas entrelinhas, entre uma trilha e outra, nas curvas.


Na forma de palavras, excertos coligidos nessa expressão da falta, encontro trajetórias de devires e passados atualizados, presentes prometidos, futuros ideais.


Entre as palavras que escrevo, o eu encontro nuns cheiros e numas curvas e em outras que estão agora mesmo aqui em emoções. Fosse eu tão só sensação, seria fumaça. Nem lembranças. Entidades, estados e identidades minhas e sobras suas no cheiro que foi o nosso ardor. São sensações do meu gozo de agora: o Mesmo.


Falar, então, será estender a mão mais uma vez sem saber se tocarei. Escrever na velocidade desse tempo que não passa, Exercito minha distensão. Descarno de novo todas as emoções, todas já reveladas nos sentidos compartilhados de uma presença monumental de agora mesmo. Sim, mais o ardor, sinta-me, amor, e muito que já, já, já eu chego aqui.


Bem vindo!


*