28.12.10

Dioniso


Dioniso é um deus incrível. Deus das cintilações, deus vegetal e animal, é pantera, tigre, leão, touro, serpente, escorpião, sol e ar. Sendo deus variável, por isto, deus das oscilações, que se mostra potente na mudança de uma estação a outra. Ele é também o mais cruel deus dos aguilhões, dos destroçamentos, dos sacrifícios.

Ele é o que nada é. Ele é o que são as gentes que inventam, sentem, pensam e a ele entregam suas oblações que lhe dão sentido. Ele é impregnação e excesso. Rigoroso e inclemente, é um deus impiedoso para com os que nele crêem e por ele atuam.

Dioniso, velho,moço e menino, é uma superfície. Mescla em si a fina prata e o incrível mercúrio. Nada ele dissolve, nem coagula. É deus nas precipitações e nos fluxos. Ele nada aponta ou mostra ou conta, senão espelha a quem a ele mira.



*

27.12.10

Estranhamento

Formalismo e Recepção: Procedimentos para estranhar a imagem poética


Proposição formulada por Victor Chkolovsky foi retomada por Brecht para a formulação dos procedimentos de trabalho do ator. A perspectiva dialética por ele indicada com o estranhamento ou efeito V (Verfremdungseffekt)


Mauro R. Rodrigues

Professor Doutor Adjunto - Universidade Estadual de Londrina - Pr

(Publicado no V Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas)


Resumo

Breves apontamentos a respeito da teoria estética formalista proposta por Victor Chklovsky permitem revisar algumas das concepções críticas da teoria da arte que abordaram o receptor, do ponto de vista do papel desempenhado por ele no processo artístico. Preocupação esta que percorre variadas vertentes críticas, no século XX. Revisitadas permitirão formular anotações sobre questões pertinentes à interação de sentidos entre obra e recepção. A pretensão é atualizar alguns elementos neste vasto território conceitual, demarcando princípios tais como objeto estético, desfamiliarização, procedimento e materialidade que circundam a questão da imagem poética.

Palavras-chave: Teoria Estética; Recepção; Formalismo Russo.

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the palid bust of Pallas just above my chamber door;

(Allan Poe)

Inúmeras vertentes da teoria da arte, no século XX, incumbiram-se da tarefa de demarcar papéis específicos ou gerais desempenhados pelo público, no amplo território das práticas artísticas e recepção. A voz de Chklovsky ecoa entre os formalistas russos, desde 1917, ressoando de modo determinante nos estudos da literatura. Repensa a multiplicidade das operações poéticas, complexas relações do receptor, no consumo e na consumação da obra de arte.

No artigo A arte como procedimento[1], de 1917, Chklovsky enfoca a arte do ponto de vista da comunicação. Sublinha os elementos operacionais ao avaliar a constituição do objeto artístico. Destaca as técnicas de composição, o conjunto das regras relativas à linguagem (retórica) e os procedimentos da construção formal.

Ressalta ser a linguagem o material privilegiado na feitura da obra de arte, onde se dá a pregnância simbólica, sob a pretensão de vir a ser tal matéria considerada “artística”. Na ordem da linguagem ele revela como a materialidade do objeto se manifesta à percepção, servindo à caracterização e ao reconhecimento das finalidades propriamente estéticas de tal objeto, uma vez arranjados sob procedimentos específicos. Nas palavras dele: “são objetos criados com o auxílio de procedimentos particulares, cuja finalidade é garantir para esses objetos uma percepção estética” (in TODOROV, 1965: 78).

A materialidade organiza-se, na obra de arte, como linguagem. Isto é, sob um modo específico de organização ou arranjo das matérias que permitirá a um receptor deste objeto formado encadeá-lo a uma série de contextos sociais, biográficos, psicológicos, ideológicos ou outros. A experiência estética dá-se, assim, a partir do reconhecimento e da organização da matéria empregada no objeto, associando-os a sistemas de sentidos. É o arranjo específico, sob certos procedimentos de construção, o que permite efetivar qual a experiência estética que tal objeto predispõe. O objeto ganhará sentido estético, trabalho sim da inteligência do artista, tão só exposto ao processo dinâmico, complexo, e de sua finalidade última, que é o da atribuição de valores a ele pelos seus receptores. Isto destacada o conhecimento artístico do conhecimento filosófico e científico.

Para refletir sobre os procedimentos que franqueiam a elaboração artística e a experiência estética, Chklovsky inicia um ataque às teorias que excluíram da análise o âmbito material da obra. Ao tomar tão só o conjunto imagem e (con-)figuração, criadas pela ação do artista, estas análises deformam o conceito de experiência estética. Nas palavras dele (1978: 6): “sem imagem, é evidente, não existe arte! (...) A arte é um pensamento que se atualiza por meio de imagem, mas não é ela mesma”.

Os formalistas criticam a idéia de a arte ou a estética serem tomadas como reconhecimento apenas da pregnância simbólica da imagem. Partem da premissa de que o destaque dado à percepção da imagem, e não à organização da materialidade que a compõe, sedimentou-se na consciência dos estudiosos e também na do senso comum. Argumenta Chklovsky que tomar a afirmação da imagem como princípio norteador da reflexão acerca da singularidade da experiência estética é entender o princípio artístico como algo idêntico à “atividade imaginativa que favorece a criação de uma teoria baseada no fato de a atividade imaginativa ser idêntica à capacidade simbólica do homem” (1976: 8). Seu combate dirige-se à redução da experiência artística ao reconhecimento de significados, em que o objeto redundaria aos sentidos habituais e cotidianos a ele atribuídos e reduz-se ao consumo. Ao contrário disto, propõe ele, distingue o caráter imagético da obra (o material do conhecimento ou capacidade simbólica) e o caráter aparentemente imaterial das imagens poéticas. Com isto, o autor russo retoma um problema central da teoria da arte que associa o “poético” às figuras e interpretações argumentativas retóricas.

Para Chklovsky[2], as imagens poéticas analisadas ou elaboradas à base de figuras retóricas, tal metáfora, metonímia, hipérbole, alegoria são submetidas a aproximações lógico-discursivas dos significados constituídos historicamente para uma imagem. Aproximações estas que induzem a compreender ou a reconhecer uma natureza imagética para um objeto, entretanto, a retórica permite destacar a imagem de qualquer outro elemento significante nela mesma, ou da relação significante que tal objeto possa vir a gerar. Este limite foi superado posteriormente, a partir dos anos 1970 do século passado, associando-se à análise imagética e figuracional os conceitos fornecidos pela epistême piscanalítica e semiótica.

O reconhecimento da organização e materialidade, entretanto, franqueia novas condições para a obra ser analisada diante de um mundo concreto, afirma a teoria formalista, desvendando uma condição real para um receptor igualmente real de contingente historicamente determinada. Elevar-se-á o objeto, assim, para além do conteúdo espiritual (idiomático) dele mesmo, isto é, dos sentidos ou significados atribuídos à imagem ou à matéria em si, pelo seu emprego historicamente cunhado: o ouro ou pigmentos e os valores destes na pintura renascentista; a literatura dramática renascentista, na obra de Shakespeare, diante de uma remontagem dela. Ou seja, cada obra ou conjunto delas impõe uma sistemática que lhe é própria e contingente.

Conhecer os modos empregados para a feitura da obra permite registrar a inteligência das articulações e os elementos que propriamente serviram à experiência do artista e, para o receptor, abrirá um jogo que lhe permitirá atribuir novos sentidos àquela reunião de elementos. E aqui se delineia uma definição das tarefas do receptor: conhecer o material da feitura, de como e de quais meios foram empregados para concretizar certa expressão (ou exterioridade) a esta mesma organização criada na forma do objeto. Isto é, ao receptor cabe um trabalho de imersão nos meios de produção e de processamento das matérias reorganizadas numa obra, reconhecendo os sistemas que colocam em funcionamento a representação artística (a matéria transformada pela mimesis): os procedimentos.

O reconhecimento formal proposto pelos críticos russos e eslavos que se debruçaram sobre a questão da especificidade da obra e experiência com finalidade estética, no ínício do Século XX, contrapõe-se à idéia de ser a recepção mera identificação. Segundo Chklovsky, experiência estética engloba um processo de percepção que, este sim, é habitual e mecânico, em razão do caráter da percepção e da experiência sensorial ser automático e inconsciente. Neste ponto a teoria de Chklovsky parece avançar em defesa de certo inatismo para a percepção, o qual presidiria o olhar que gerou a própria feitura do sentido da obra, assim sem acoplar à dinâmica da recepção o contexto referencial que o receptor emprega para a construção do sentido e, memso, do aprendizado da percepção enquanto linguagem dos sensorial.

O reconhecimento formal proposto por Chklovsky salta sobre as operações retóricas, revelando-as ineficientes ou limitadas, uma vez elas aproximarem duas coisas como equivalentes. Na argumentação retórica o objeto estético apaga ou esconde o caráter da mediação (elaboração), inerente à própria linguagem que emprega. Ressalte-se que o conceito de intertextualidade e dialogismo são posteriores e certamente interdependente dos conceitos destes aqui sublinhados. Reconhecer e analisar o objeto estético, apenas em termos da representação simbólica que ele cumpre num (só) discurso, apaga-se a experiência do construtor e também a do receptor, fazendo reinar tão só o sentido ou tão só o objeto construído ou constituído pela erudição e cultura do interprete.

O procedimento da composição, para Chklovsky, não só constrói a imagem, mas é um modo específico que pode torná-la inteligível. O procedimento faz a imagem abalar a experiência cotidiana da visualidade (e de toda percepção) do receptor. Sublinha a importância da imagem, recolocando em questão a organização das formas que se reúnem para elaborá-la e as figuras retóricas compostas pela/com a imagem que pretende ser artística. Deste modo, reconhece a necessidade da imagem cumprir uma função poética, no contexto da experiência estética, para além de ser ilustrativa ou meramente operativa de um símbolo.

O objetivo da arte seria, para este formalista, a produção da impressão do objeto comovisão” e “escuta”, e não mero reconhecimento de alguma realidade imitada ou mera organização material (composição) de obras ou repositório de informações.

A arte e a operação que a constrói são, na visão de Chklovsky, aparatos para a experiência de desvelamento da própria construção e da ação de quem a erigiu e de quem a recepciona. Diz ele ser o procedimento da arte, por excelência, uma retirada dos objetos do mundo cotidiano e a transformação deles, pela mimesis, recolocando-os em outro estado. Esta condição transformadora da operação poética permitirá diferenciar tais objetos de algo natural, tornando difícil a apreensão deles ao mostrá-los (1976: 25-s.s.).

O propósito da operação poética e reconhecimento formal dela não é outro senão provocar o efeito de desfamiliarização em relação ao mundo senso comunal do artista ou do receptor. A operação artística, na busca de um efeito artístico — artifício—, faz durar o processo perceptivo. Isto por que o que está pronto e é automático à percepção não tem importância para o pensamento ou para a mão que quer construir objetos com finalidades estéticas. Ressalte-se aqui o conceito de duração, elemento prioritário na história da estética filosófica, fundante da idéia da epoché, a suspenção do julgamento que subleva o tempo à sensação de pura realização.

A operação poética, nestes ecos que nos chegam da modernidade estética, pela voz de Chklovsky e dos conceitos que fundam o pensamento crítico contemporâneo, parecem reclamar uma modificação relevante no status da autoria da obra de arte. O papel de co-elaborador, co-participante e de a experiência estética ir mais além da atividade individual, reclama o conhecimento operativo, a inteligência e a sensibilidade do artista, tanto quanto requer e mobiliza o papel que desempenha aí o receptor.

A estética moderna move-se em direções as mais variadas. Rumo a novos programas de ação. Rumo à provocação. Rumo à produção de conhecimentos especificamente artísticos e estéticos. Mobiliza um novo pensamento e um novo lugar para as artes e faz o mesmo para os espectadores. A obra faz-se a partir de um jogo de parcerias e de encontros que consumam a obra com um novo modo de existir.

A renovação da crítica de arte, no século XX, legou-nos este inquietante conceito que é o de a arte ser uma provocação, empregando meios para nos desfamiliarizar com materilidade do mundo. Não apenas se afirma a arte e a experiência estética, mas a possibilidade de conhecermos e de criamos novos conceitos de arte, como se contextualiza a obra e o trabalho do artista, não sem deixar de estranhar as experiências que dizem respeito ao receptor e à participação dele na dinâmica da experiência estética. A nova crítica aponta os sistemas aos quais a materialidade está submetida ao processo artístico, suscita sassim as atividades do espectador. E, então, possibilita repensarmos o que é em nós mesmos e no mundo que nos causa estranheza e nos faz tornar um objeto em objeto estético.



[1] CHKLOVSKY, Victor. “L’art comme procéde”. In: TODOROV, T. 1965. Théorie de la littérature: textes des formalistes russes. Paris, Le Seuil.

[2] CHKLOVSKY, V. 1976. Teoria della prosa. Torino: Einaudi.

Facto



Mão direita
a tradição
passa de novo o raio
vermelho e verde
veloz
trans
passado
bordante
braços dados
e nem não
e nem nunca vão
calar estes mares
agora se vai cantar
este fado!
Photo by Fabien Bravin

Outono tom

*

Outono angular, sem chuvas brandas, de nuvens ébrias e ventos ímpios. Circunspecto o tempo. Senhoras do mundo a varrer toda mancha, a tintar os dias de chumbo e violeta.

Cai a tarde sem estrondo ou arroubo, o sol se nubla à Francis Bacon. As imagens fantasmagóricas, desenhos sobre o tapete descarnado das terras em campos desnudados e são os grãos grávidos da vida latente. O céu de terracota. Os pássaros em agonia, antes de deixarem morrer nas espigas os últimos grãos da fértil estação passada. Choram os pássaros em desespero de finada primavera. Não haverá pétalas noturnas a brilhar sobre as ramas, apenas as folhas da manhã. Intactas estarão as nossas asas. Os edifícios, as casas e ruas estarão às voltas com as névoas de rios subterrâneos exudados do breu da noite. Não se vêem e nem sabem existir no outono os nossos rubores . Qual paisagem de cidade em porcelana é esta aqui.

Hoje singular.

Apelo às poções

Na derrisão das vinhas,

Algibeira ao mundo,

Campeio longas distâncias.

Devasso em rodas

A derrisão das vinhas,

Esmagar o tempo

Colecionar essas pedras.

7.6.10

Teatro d'Vertigem revisita (velhas) utopias

Mauismo, intervenção cênica


Reunidos os espectadores na sala de alto pé direito e pouco iluminada. Um grande círculo de cadeiras. Crachás, números, cartões de ir e vir, prêmios, presentes, instruções, roteiro, endereços e guias para os grupos de senhas. Começa a operar o lado de dentro da encenação, o espaço cênico sem divisão palco/platéia, sem convite prévio. A festa da (velha) representação teve seu começo.
Três pessoas ou atores-guias nos conduzem pelos endereços indicados nos cartões numerados. Teatro passeio, teatro boulevard. Engano! Erro!
Sem se mostrar personagens, os guias indicam também atitudes e corportamentos; voltaremos às 21horas e 30minutos...; ajam com respeito e com atenção... As cenas são fragmentadas, divididas entre ir e vir...
Os espectadores voyeurs, a espiar a intimidade dos lugares: olho pela janela de uma casa, a pensão, o cortiço, a moradia, o abrigo... Fragmentos da vida íntima de moradores do local. Entre os diferentes espaços ocorre a 'interivenção', e mais o texto entrecortado que anuncia: Revolução! Passa um carro de som na rua, ressoa música. É a internacional socialista?
A mão pesada de Fernando Bonassi marca as falas, a dramaturgia, de certa ironia como estratégia discursiva. Se escutei revolução, também escutei provocação.

As cenas são locadas nas inusitadas realidades íntimas de moradias, bares e lugarejos da Rua 13 de Maio, no bairro Bela Vista (Bexiga) em São Paulo. Ali instalam-se as cores esmaecidas de uma revolução imaginária e utópica, plantada em algum lugar da nossa história real. Na oficina instalada numa garagem, num porão, reencontro o mesmo mimeógrafo com stencil e tinta à álcool que nos idos de 70 fizeram os libelos de futuros libertos, tal como adolescente eu me imaginava seria um dia.

Na casa de fulana, na cabeceira da cama, quatro travesseiros amarfanhados pelo uso.

Mescla instigante e provocativa, reinventa-se o lugar teatral, substituído pela ilusão de que haja vida real sem mediação. Há representação, pois nada foge à máquina revolucionária do teatro que nos habita.

O Teatro da Vertigem acerta na ousadia com o Mauismo a insistir sobre a memória, a lembrar-nos da indiferença, da facilidade de circularmos confortavelmente entre os muros das nossas pequenas e feias e sujas cidade subjetivas.

Bravo!

2.6.10

Requiem

*


No passamento dos poetas as praças de todas as vilas e cidades amanheceriam floridas e festejariamos a vida que eles nos emprestaram ou deram ou injetaram, não fosse tão curta a nossa memória, mestra na arte de diariamente nos esmaecer.


Photo:
Mothman by PanZerkorps


*




31.5.10

Carta de Amor

*

Esta carta já teve destinatário certo, depois ficou perdida entre endereços complexos, gavetas, até ser perturbada demais para qualquer leitura ou destinatário. E ela fadou-se ao extravio.
Eu a escrevi faz muito, entre o final do século passado e o começo deste. Hoje torno os olhos ao passado e a releio e a reescrevo. Descubro-me um outro, escondido num ponto e noutro à mostra... aqui e ali em mim diferem emoções e vagam as memórias.
Esta carta sempre esteve dirigida a mim mesmo, posto que o amor ao qual nela me refiro, fui eu quem fez, sentiu, erigiu... embora fosse destinado a outrem. Se houvesse um outro título, mais apropriado, seria: carta ao amor próprio ou evocação a este.

Abri-la e a destinar para que você a receba, atualiza a minha alegria de estar encantado pelos dias em que eu escrevia cartas para mim a inventar o que seria o mais além.

É isto!


Você me disse que a última carta enviada demorou mais de uma semana para chegar às suas mãos, então eu espero que já estejamos juntos quando receber esta. Os assuntos aqui tratados, em parte, já terão expirado. As cartas não ressoam como quando as escrevemos. Limites da linguagem. O que me interessa é o destinatário e a proveniência desta escritura, mais que a carta em si ou propriamente tratar assuntos.


Tenho vivido um tempo desproporcionalmente veloz. A cidade me proporciona isto em situações variadas. O meu trabalho também demanda voracidades. A lentidão do tempo eu percebo quando ele constitui o espaço intransponível. O tempo é a barreira, o espaço da distância, a nossa separação. O tempo veloz não se distende, mas é marcado pela nossa sempre contingente reunião: um encontro sempre momentâneo. Nos nossos encontros eu sinto o tempo se alongar. Ele se limita, assim, a um tempo de calendário. Já, já, eu chego.


O que eu poderia contar-lhe que você não saiba? Digo (escrevo) o que se tem passado comigo, e serão novas? Nunca as cartas de amor dizem tudo o que delas esperamos. Nem é o que se possa escrever o que se gostaria de ler. Cartas de amor são anúncios de si, motivações do reencontro.


Eu já lhe disse do contínuo diálogo silencioso que estabeleço contigo, no qual reconto o que faz a tessitura dos meus dias. O que me move a escrever, contar do desconexo tempo entre desfazer-me em tramas de horas, fabricar o espaço de aproximação, estrutura essas trilhas e essas pontes nas quais eu me reconheço.


Eu grafo o tempo que nada diz, mas me reconstrói. Então, é este o movimento mais caro e estimulante. São pontes que eu tenho encontrado aqui, estando à espera.


Não me basta escrever só por escrever. Eu lhe escrevo para me escrever. Não é para inscrever-me na pele da memória e durar em você. São outros os meus intentos.


Cartas não são ocasiões para a lembrança da pele dos amantes. É a recriação que eu faço do outro, de um nós e das tramas que teço o que me interessa deveras. Assim me lanço às cegas nesta escritura da ausência. E escrever passa a ser, não estar ou (re)contar, de certa maneira é ser ao lado de quem falta: eu me reinvento e eu lhe invento.


Declaro-me mais uma vez perdido no labirinto de palavras (pás que lavram, ouso em letras!). O discurso mais que tecido por letras, frases, orações, é feito de pausas, afeito e afeto em pausas.


As tramas das minhas intenções e propósitos suplantam qualquer linguagem. Inventar e inverter ou articular fogem. Os caminhos me levam até aí, seu lugar que é um vir a mim. O centro da linguagem, a descrição do tempo e a ausência: um devir.


Tarefas de hoje: Lavrar escrituras, mais ou menos como construir um universo de referências para o inominável, invisível, intocável que eu sinto e sei abaixo da pele. Não são veias. Serão vias!


Eu não estou aqui, vou em direção ao que me faz (ser eu). Encontro-me na falta a cada dia e a cada minuto.


Parece-me que o tempo de distâncias, embora concreto, não tem fim, O tempo também não teve começo. Então, já sem tempo, já, já eu chego aí.


Os meus suspiros depositam a inquietude e a impossibilidade nas esperanças. Um diálogo contínuo, a ordem de tempo e de espaço eu suspiro, nas pausas. Tanto ar quantas são as ausências que sinto em mim, eu inspiro. Olho à rua as ausência, débeis vagamos em olhares rasos e saudades.


Sem dizer ou escutar palavras (jocosas ou não), eu gostaria de sentir no hálito do outro, o silêncio arfar entre as costelas. Porque não, mesmo a pausa e a ausência suspiradas, conseguem transportar para além o querer e o sentir? Para além? Acerto as contas com o que quero, fazendo-me verbo, dizendo-me aqui e ali, como for possível. Por enquanto: já, já!


A sua presença (ausente) acomete e atordoa o meu "estar distante". Tão próximo e cheio de sentidos que fazem fugir quaisquer palavras que possam expressar o meu (nosso) desejo.


As palavras nunca bastam, por que somos feitos de outros e tantos movimentos.


Distraído... Destraído... Realiado... Aliado... Nem o trabalho, nem os acontecimentos e afetos que me assaltam dia e noite. Estou cego ou vejo?


Entre espaços que percebo, há os que me concebem e vãos. Crio palavras tal ervas aqui e ali. Retorno à metáfora e reescrevo. Lembro-me de aparar minhas penas e pesares na forma de letras.


Mais e mais desejo estar aí, no interstício, no subjetivo, naquilo que vejo no espelho. O espaço de ausências plenas que, apesar de presente, está fora de si. E eu não o tenho. Não há um Si ou o Mesmo no vazio: eu-em-mim: Si, si! Os pontos são de referência, tal os espaços refletidos na superfície de vidro e metal que eu espelho.


Alguém disse (foi o Deleuze) que o mais profundo que se pode ir, no outro, é a superfície da pele, nas curvas e reentrâncias dela. Ele não disse, perguntou: quanto a pele pode ser permeável e elástica, quanto ela suporta e quanto ela sustenta?


Das poucas coisas que percebo a melhor é a nossa demora.


Sinto a falta como uma presença e a presença como uma falta que reciprocamente não se preenchem. E, mesmo com estes esforços das minhas lavras, aqui e aí, jamais o tempo será tão veloz quanto agora quando o estendo. Mesmo assim, insisto em continuar e nos escrever para ver se reúno novamente uns estilhaços meus, uns cansaços que se espalham nas entrelinhas, entre uma trilha e outra, nas curvas.


Na forma de palavras, excertos coligidos nessa expressão da falta, encontro trajetórias de devires e passados atualizados, presentes prometidos, futuros ideais.


Entre as palavras que escrevo, o eu encontro nuns cheiros e numas curvas e em outras que estão agora mesmo aqui em emoções. Fosse eu tão só sensação, seria fumaça. Nem lembranças. Entidades, estados e identidades minhas e sobras suas no cheiro que foi o nosso ardor. São sensações do meu gozo de agora: o Mesmo.


Falar, então, será estender a mão mais uma vez sem saber se tocarei. Escrever na velocidade desse tempo que não passa, Exercito minha distensão. Descarno de novo todas as emoções, todas já reveladas nos sentidos compartilhados de uma presença monumental de agora mesmo. Sim, mais o ardor, sinta-me, amor, e muito que já, já, já eu chego aqui.


Bem vindo!


*