27.12.10

Estranhamento

Formalismo e Recepção: Procedimentos para estranhar a imagem poética


Proposição formulada por Victor Chkolovsky foi retomada por Brecht para a formulação dos procedimentos de trabalho do ator. A perspectiva dialética por ele indicada com o estranhamento ou efeito V (Verfremdungseffekt)


Mauro R. Rodrigues

Professor Doutor Adjunto - Universidade Estadual de Londrina - Pr

(Publicado no V Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas)


Resumo

Breves apontamentos a respeito da teoria estética formalista proposta por Victor Chklovsky permitem revisar algumas das concepções críticas da teoria da arte que abordaram o receptor, do ponto de vista do papel desempenhado por ele no processo artístico. Preocupação esta que percorre variadas vertentes críticas, no século XX. Revisitadas permitirão formular anotações sobre questões pertinentes à interação de sentidos entre obra e recepção. A pretensão é atualizar alguns elementos neste vasto território conceitual, demarcando princípios tais como objeto estético, desfamiliarização, procedimento e materialidade que circundam a questão da imagem poética.

Palavras-chave: Teoria Estética; Recepção; Formalismo Russo.

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the palid bust of Pallas just above my chamber door;

(Allan Poe)

Inúmeras vertentes da teoria da arte, no século XX, incumbiram-se da tarefa de demarcar papéis específicos ou gerais desempenhados pelo público, no amplo território das práticas artísticas e recepção. A voz de Chklovsky ecoa entre os formalistas russos, desde 1917, ressoando de modo determinante nos estudos da literatura. Repensa a multiplicidade das operações poéticas, complexas relações do receptor, no consumo e na consumação da obra de arte.

No artigo A arte como procedimento[1], de 1917, Chklovsky enfoca a arte do ponto de vista da comunicação. Sublinha os elementos operacionais ao avaliar a constituição do objeto artístico. Destaca as técnicas de composição, o conjunto das regras relativas à linguagem (retórica) e os procedimentos da construção formal.

Ressalta ser a linguagem o material privilegiado na feitura da obra de arte, onde se dá a pregnância simbólica, sob a pretensão de vir a ser tal matéria considerada “artística”. Na ordem da linguagem ele revela como a materialidade do objeto se manifesta à percepção, servindo à caracterização e ao reconhecimento das finalidades propriamente estéticas de tal objeto, uma vez arranjados sob procedimentos específicos. Nas palavras dele: “são objetos criados com o auxílio de procedimentos particulares, cuja finalidade é garantir para esses objetos uma percepção estética” (in TODOROV, 1965: 78).

A materialidade organiza-se, na obra de arte, como linguagem. Isto é, sob um modo específico de organização ou arranjo das matérias que permitirá a um receptor deste objeto formado encadeá-lo a uma série de contextos sociais, biográficos, psicológicos, ideológicos ou outros. A experiência estética dá-se, assim, a partir do reconhecimento e da organização da matéria empregada no objeto, associando-os a sistemas de sentidos. É o arranjo específico, sob certos procedimentos de construção, o que permite efetivar qual a experiência estética que tal objeto predispõe. O objeto ganhará sentido estético, trabalho sim da inteligência do artista, tão só exposto ao processo dinâmico, complexo, e de sua finalidade última, que é o da atribuição de valores a ele pelos seus receptores. Isto destacada o conhecimento artístico do conhecimento filosófico e científico.

Para refletir sobre os procedimentos que franqueiam a elaboração artística e a experiência estética, Chklovsky inicia um ataque às teorias que excluíram da análise o âmbito material da obra. Ao tomar tão só o conjunto imagem e (con-)figuração, criadas pela ação do artista, estas análises deformam o conceito de experiência estética. Nas palavras dele (1978: 6): “sem imagem, é evidente, não existe arte! (...) A arte é um pensamento que se atualiza por meio de imagem, mas não é ela mesma”.

Os formalistas criticam a idéia de a arte ou a estética serem tomadas como reconhecimento apenas da pregnância simbólica da imagem. Partem da premissa de que o destaque dado à percepção da imagem, e não à organização da materialidade que a compõe, sedimentou-se na consciência dos estudiosos e também na do senso comum. Argumenta Chklovsky que tomar a afirmação da imagem como princípio norteador da reflexão acerca da singularidade da experiência estética é entender o princípio artístico como algo idêntico à “atividade imaginativa que favorece a criação de uma teoria baseada no fato de a atividade imaginativa ser idêntica à capacidade simbólica do homem” (1976: 8). Seu combate dirige-se à redução da experiência artística ao reconhecimento de significados, em que o objeto redundaria aos sentidos habituais e cotidianos a ele atribuídos e reduz-se ao consumo. Ao contrário disto, propõe ele, distingue o caráter imagético da obra (o material do conhecimento ou capacidade simbólica) e o caráter aparentemente imaterial das imagens poéticas. Com isto, o autor russo retoma um problema central da teoria da arte que associa o “poético” às figuras e interpretações argumentativas retóricas.

Para Chklovsky[2], as imagens poéticas analisadas ou elaboradas à base de figuras retóricas, tal metáfora, metonímia, hipérbole, alegoria são submetidas a aproximações lógico-discursivas dos significados constituídos historicamente para uma imagem. Aproximações estas que induzem a compreender ou a reconhecer uma natureza imagética para um objeto, entretanto, a retórica permite destacar a imagem de qualquer outro elemento significante nela mesma, ou da relação significante que tal objeto possa vir a gerar. Este limite foi superado posteriormente, a partir dos anos 1970 do século passado, associando-se à análise imagética e figuracional os conceitos fornecidos pela epistême piscanalítica e semiótica.

O reconhecimento da organização e materialidade, entretanto, franqueia novas condições para a obra ser analisada diante de um mundo concreto, afirma a teoria formalista, desvendando uma condição real para um receptor igualmente real de contingente historicamente determinada. Elevar-se-á o objeto, assim, para além do conteúdo espiritual (idiomático) dele mesmo, isto é, dos sentidos ou significados atribuídos à imagem ou à matéria em si, pelo seu emprego historicamente cunhado: o ouro ou pigmentos e os valores destes na pintura renascentista; a literatura dramática renascentista, na obra de Shakespeare, diante de uma remontagem dela. Ou seja, cada obra ou conjunto delas impõe uma sistemática que lhe é própria e contingente.

Conhecer os modos empregados para a feitura da obra permite registrar a inteligência das articulações e os elementos que propriamente serviram à experiência do artista e, para o receptor, abrirá um jogo que lhe permitirá atribuir novos sentidos àquela reunião de elementos. E aqui se delineia uma definição das tarefas do receptor: conhecer o material da feitura, de como e de quais meios foram empregados para concretizar certa expressão (ou exterioridade) a esta mesma organização criada na forma do objeto. Isto é, ao receptor cabe um trabalho de imersão nos meios de produção e de processamento das matérias reorganizadas numa obra, reconhecendo os sistemas que colocam em funcionamento a representação artística (a matéria transformada pela mimesis): os procedimentos.

O reconhecimento formal proposto pelos críticos russos e eslavos que se debruçaram sobre a questão da especificidade da obra e experiência com finalidade estética, no ínício do Século XX, contrapõe-se à idéia de ser a recepção mera identificação. Segundo Chklovsky, experiência estética engloba um processo de percepção que, este sim, é habitual e mecânico, em razão do caráter da percepção e da experiência sensorial ser automático e inconsciente. Neste ponto a teoria de Chklovsky parece avançar em defesa de certo inatismo para a percepção, o qual presidiria o olhar que gerou a própria feitura do sentido da obra, assim sem acoplar à dinâmica da recepção o contexto referencial que o receptor emprega para a construção do sentido e, memso, do aprendizado da percepção enquanto linguagem dos sensorial.

O reconhecimento formal proposto por Chklovsky salta sobre as operações retóricas, revelando-as ineficientes ou limitadas, uma vez elas aproximarem duas coisas como equivalentes. Na argumentação retórica o objeto estético apaga ou esconde o caráter da mediação (elaboração), inerente à própria linguagem que emprega. Ressalte-se que o conceito de intertextualidade e dialogismo são posteriores e certamente interdependente dos conceitos destes aqui sublinhados. Reconhecer e analisar o objeto estético, apenas em termos da representação simbólica que ele cumpre num (só) discurso, apaga-se a experiência do construtor e também a do receptor, fazendo reinar tão só o sentido ou tão só o objeto construído ou constituído pela erudição e cultura do interprete.

O procedimento da composição, para Chklovsky, não só constrói a imagem, mas é um modo específico que pode torná-la inteligível. O procedimento faz a imagem abalar a experiência cotidiana da visualidade (e de toda percepção) do receptor. Sublinha a importância da imagem, recolocando em questão a organização das formas que se reúnem para elaborá-la e as figuras retóricas compostas pela/com a imagem que pretende ser artística. Deste modo, reconhece a necessidade da imagem cumprir uma função poética, no contexto da experiência estética, para além de ser ilustrativa ou meramente operativa de um símbolo.

O objetivo da arte seria, para este formalista, a produção da impressão do objeto comovisão” e “escuta”, e não mero reconhecimento de alguma realidade imitada ou mera organização material (composição) de obras ou repositório de informações.

A arte e a operação que a constrói são, na visão de Chklovsky, aparatos para a experiência de desvelamento da própria construção e da ação de quem a erigiu e de quem a recepciona. Diz ele ser o procedimento da arte, por excelência, uma retirada dos objetos do mundo cotidiano e a transformação deles, pela mimesis, recolocando-os em outro estado. Esta condição transformadora da operação poética permitirá diferenciar tais objetos de algo natural, tornando difícil a apreensão deles ao mostrá-los (1976: 25-s.s.).

O propósito da operação poética e reconhecimento formal dela não é outro senão provocar o efeito de desfamiliarização em relação ao mundo senso comunal do artista ou do receptor. A operação artística, na busca de um efeito artístico — artifício—, faz durar o processo perceptivo. Isto por que o que está pronto e é automático à percepção não tem importância para o pensamento ou para a mão que quer construir objetos com finalidades estéticas. Ressalte-se aqui o conceito de duração, elemento prioritário na história da estética filosófica, fundante da idéia da epoché, a suspenção do julgamento que subleva o tempo à sensação de pura realização.

A operação poética, nestes ecos que nos chegam da modernidade estética, pela voz de Chklovsky e dos conceitos que fundam o pensamento crítico contemporâneo, parecem reclamar uma modificação relevante no status da autoria da obra de arte. O papel de co-elaborador, co-participante e de a experiência estética ir mais além da atividade individual, reclama o conhecimento operativo, a inteligência e a sensibilidade do artista, tanto quanto requer e mobiliza o papel que desempenha aí o receptor.

A estética moderna move-se em direções as mais variadas. Rumo a novos programas de ação. Rumo à provocação. Rumo à produção de conhecimentos especificamente artísticos e estéticos. Mobiliza um novo pensamento e um novo lugar para as artes e faz o mesmo para os espectadores. A obra faz-se a partir de um jogo de parcerias e de encontros que consumam a obra com um novo modo de existir.

A renovação da crítica de arte, no século XX, legou-nos este inquietante conceito que é o de a arte ser uma provocação, empregando meios para nos desfamiliarizar com materilidade do mundo. Não apenas se afirma a arte e a experiência estética, mas a possibilidade de conhecermos e de criamos novos conceitos de arte, como se contextualiza a obra e o trabalho do artista, não sem deixar de estranhar as experiências que dizem respeito ao receptor e à participação dele na dinâmica da experiência estética. A nova crítica aponta os sistemas aos quais a materialidade está submetida ao processo artístico, suscita sassim as atividades do espectador. E, então, possibilita repensarmos o que é em nós mesmos e no mundo que nos causa estranheza e nos faz tornar um objeto em objeto estético.



[1] CHKLOVSKY, Victor. “L’art comme procéde”. In: TODOROV, T. 1965. Théorie de la littérature: textes des formalistes russes. Paris, Le Seuil.

[2] CHKLOVSKY, V. 1976. Teoria della prosa. Torino: Einaudi.

Um comentário:

Luis Paranhos disse...

Muito bom, Mauro