3.3.07

Sart(r)e de banda: ser quase nada

*
Eu não posso ser senão o que eu sou, não posso tornar-me senão o que eu sou, não posso querer senão o que eu sou, e o que sou é a situação em que me encontro e sobre a qual não posso nada.

Eu escolho; eu quero; significam, na realidade, eu devo, o que quer dizer: a impossibilidade de ser, de agir, de querer, de escolher, é na realidade a impossibilidade de agir, de escolher e de querer de modo diferente de como é, isto é, das condições de fato implícitas na situação que nos constitui.

O homem é fruto de uma liberdade infinita, sem limites, isto é, incondicionada e absoluta. O homem é, de fato, o ser que projeta ser Deus
(J-P. Sartre. Être et néant, p. 653)

Mas este é um Deus falido, um Deus chamado fracasso.
Estamos, em realidade, impossibilitados de escolher!
Temos a liberdade de escolher. Não temos escolha! Estamos fadados a escolher a impossibilidade como única escolha
Somos potentes na nossa impotência!
quanto ócio há no ofício ou no vício?
não mais fumar dá nisso,
o tempo em desperdício!
*

24.2.07

and

*


cento e sessenta e oito horas

num só dia

de(s)caminho
surpresa
desvãos


*

18.2.07

wonder, Ander

*
a carne é aval da pele

*
Tinho
aos tons
à proximidade
ao encontro
eu brindo.
Andy
168 horas
num só dia
sem igual

10.1.07

Teicoscopia

*

Teicoscopia (grego, teischoskopia, visão através da parede)
Cena de Homero (Ilíada; 3, 121, 244), na qual Helena descreve a Príamo os heróis gregos que só ela consegue enxergar. É um recurso dramático em que uma personagem descreve o que se passa nos bastidores de uma ação, no mesmo instante em que o observador faz o relato disso. Evita-se assim representar ações violentas ou inconvenientes, dando ao espectador a ilusão de que elas se passam realmente, e que ele assiste a elas através de uma pessoa interposta.
De um dicionário de impressão imprecisa.


*
Dar olhos ao mundo e vê-lo
Lentes para enxergar o que é próximo. Apenas estas. Vejo o íntimo e pessoal. À distância nada mais. O além é agora aquém. Minhas lentes para o distante se suicidaram em misterioso movimento. O cristal não resistiu e estilhaçou-se na dança ao chão, esgueirando-se pelas quinas ladrilhadas, frias e escorregadias. Distâncias agora feitas de lascas em filigramas ínfimas, distantes, futuras.

Para rever (re)cantos do mundo próximo e distante, inverto as lições da ótica: amores à proximidade ou grandezas inimagináveis, cristais convergentes; aos fiapos, farpas e outras dispersões, cristais divergentes. Lentes para adivinhar abismos que a mão sente na face mal escanhoada Sejam vidros, resinas e ou cristais, veja você bem, absolvem-nos da culpa de não ver tudo. Entrega-se à falha dos olhos a natureza torpe de nada saber à exaustão. Também, qual a razão em exaurir o mundo à faina da explicação?

Olhar é, mesmo de segunda mão, um pensamento. Bifocal, multifocal, ao menos até os próximos dias, limitados ou ampliados meus olhos. Senão o mundo, às impressões monofocais eu me entrego.
Em meio à névoa, amores idos, olhos sem corroborar, nada mais além das mãos para tatear ao redor. Limito-me assim às pequenas distâncias.

Sem expectativas de ir além, o que de olhar ou futuro dependa para as luzes exibir ao mundo, abstenho-me de perscrutar. Apenas a memória, mais que pensar, sempre será exercício um tanto exaustivo.
exato ponto de vista
incerto ponto cego
partidas e cheganças
prazer, nem refletir, olhar
Sem imaginação o caos se implanta. Toda memória é desastre, reação e fixação do encontro das luzes. Na memória as matérias se dissolvem em réstias, lembranças. Pois ela é um pensar sim, diante do qual mesmo o mais vivo torna-se pálido, torpe e distraído. O olhar da memória adequa formas, cores, nuances nem sempre renovadas por luzes do instante presente. A memória desperta na ausência, sendo saudade do calor das coisas. Ela então esquece de remarcar encontros e atritos das forças do agora, ou de vazios, lacunas, silêncios. A memória é feita também disto.
Aquidade visual limitada impõe a condição irremediável da distância. Preguiça e distância fazem esses dias, quiçá e detestavelmente, rememoráveis.
querer ver
rever
abster
Névoas do tempo no espaço que separa cada coisa em uma coisa. Janela, porta, colher e casa. Querer parece já um (re-)ver. Desdobra-se a obra da memória.

Astigmatismo, miopia ou hipermetropia dos pontos de vista são efeitos devastadores aplicados à sempre seletiva memória. Jamais se conta toda a história. Confundem-se próximos e distantes, dentros e foras, margens, continentes e conteúdos.
A imagem às cegas.
Sem os lustrados cristais o campo das evidências esboroa-se. O mundo sem as forças de profundidade, tateia-se no avesso, no decalque do desenho, o verso da folha - há algum, nã há? Raso é o mundo sem as lentes. Então epiderme em silêncios e desafios. Esta cicatriz na pele rugosa do mundo é bem perto, um quase próximo - eu anoto: todo espírito é memória. Alma é outra, inatingivel, invisível que se inaugura muito além...
Vejo! Logo, desisto!
Invista!
Nem sempre olhe.
Nem sempre vise.

No jardim de Ryoan-ji, um dos templos de Kyoto, Japão, há quinze grandes pedras espalhadas sobre o tapete ondulado de pedregulhos brancos. Elas estão cercadas por um muro atelhadado, pintado de amarelo alaranjado e lavadas sempre pelo sol e chuva. Sabe-se que são sempre quinze pedras. Então se sente próximo à fonte, junto das pedras. Olhe apenas! Uma pedra estará sempre escondida: o zen, o esvaziamento... Serão estas quatorze ilhas de pedra e musgo ali diante dos seus olhos. Obeliscos entre pedregulhos que esmaecem e ondulam entre os espaços vazios, espaços em branco. Adivinhe os quatorze monstros de pedra que se adiantam em sutis movimentos sob o seu olhar. No fundo da imagem, no muro, um céu com o sol poente. Encimadas por musgos, as pedras maiores flutuam num mar de espumas de cascalhos todos os dias penteados por habilidoso monge. Os olhos contornam as paisagens, criando outras. Sempre olhamos, mas nem sempre percebemos, vemos e nos damos tempo para fazer funcionar o nosso imaginário. Compreensão de vermos e não vermos, percebermos, se atentos, se...
luz na pedra
desprega a ruga
a pedra suspira

Quem conheceria o mundo, não pudesse tocá-lo com o olhar, Bachelard ensina no L’air et les rêves.
Toco o limitado contra-campo. Este falha nos meus pontos de vista. A visada apenas ao próximo: esmaecido o mundo. E Midas apresenta-se na pergunta: Douro um mundo de névoas?!
observar e escolher


Midas às cegas
névoa de ouro
ao sol poente
Sem ver tateio. Acomodo-me ao que dizem existir. Tomo o mundo na monotonia dele, conceitos sempre pisados: casa é toda casa; colher é toda colher; amores não são todo amor. Se enxergar casa e colher lhes descubro segredos; e antes de conjugar, no ato mesmo, amar o que haverá de ver? Virá? Interessa-me o que agregam em singular existência casa e colher e, quiçá, a beleza delas. Não me tome ao pé desta visão rasa, ou só no conceito, que casa e colher, eu suplico, são flutuações, variáveis de todo sentido de ser casa e colher e amar. Alegram-me sim os detalhes, as cores, no sentido das variedades, metamorfoses de toda coisa.
Visto outras e limitadas lentes, para deixar-me seduzir por toda coisa. E como saber os verbos para casa, colher e amar? Quais lentes, alguém sabe indicar?
Luz, luz! Mais luz!
à beira do abismo,
à morte,
ao perder o vivido,
clamou Goethe.

Acomodo-me à poltrona para dar olhos ao redor ínfimo e aqui, ao que é quase adentro: casa e colher e amar. Tenho luz suficente.
Percorro veias, nervos, ossos, nervos, nervuras da pele e o olhar não tem lugar. Faltam-me olhos para ver, ouvidos para escutar. E devaneio proximidades, íntimas conjecturas. Entrego-me a intrincados jogos de dar olhos às névoas do verbo substantivo que é todo olhar.

olho que tudo vê
olho de hórus
theos (deus)
oros (boca)
ora oro
ora demoro
Pequenezas fogem à vista e refazem antigas cartas geográficas. Revisito promessas, projetos, planos, certezas caducas que faz anos perderam vitalidade. Sobreviveram entre linhas amarfanhadas em confusa escrita. Persistem! Não reescrevo. Leio, adivinho um certo olhar. Nada sinto ao olhar estes passados, nem mais tenho tão boa visão, nem o mesmo ponto de vista: revisto, noto.
Reclino-me à proximidade sensível das gavetas. Experimento a força que elas têm. Sei lá que arranjos sensíveis eu tenho feito ao arquivar estas proximidades, aproximações, restos de alimentos que bem serviram um dia para eu ver (o além?) o de lá aqui. Além de pouco ver, também os ombros em quase nada ajudam. À excitação do toque de entreolhar o mistérios das gavetas, casa, colher e amar, os ombros mostram brumas quase insuportáveis. E isto sim é sensível, quando sou mais que olhos, eu sou também ombros em brumas. Sou olho e ombros. Dou de ombros: rimas não minoram névoas.

RISO ACIMA
RISOS EM RIMA
RIO ABAIXO
RIO IMÃ
Apesar de acomodado e confortável nesta poltrona, sobressalto diante das brumas forjadas em esforços. Arranjos de pontos de vista agora voejam nos meus ombros. Enfoques demasiadamente arraigados, doctor?, pergunta-me Austin, colega da Universidade da Califórnia. Si, si, Austin, tentativas demasiado descomedidas. Algumas delas. Olhar arraigado para o que é além, enamoro-me com futuros, colega. Objetivos! Austin, os objetivos são apaixonantes. Si, si, entendo o seu olhar e certa reprovação. E concordo. Haveria dignidade em algum repouso para olhos e ombros. Isto, caro, se a vista da janela do cotidiano, em tempo aliado, nos campos também se mostrasse germinando flores espontâneas todos os dias, semeadas por ventos. Névoas, brumas e ventos, Austin! Entende o movimento das nuvens?
ombros
assombros
névoas
nenhuma metáfora.

O ponto de vista de curta distância, compreendido pelo espaço mínimo que separa os olhos do umbigo, tantos se comprazem e divertem-se em manter, entretanto, não está implicado no ofício ao qual eu abraço (ou estou enlaçado). A vidência de março a dezembro injeta sangue nos olhos, a professia é o além - nos outros meses eu esqueço. Tratamos de pretéritos quase perfeitos, compostos pelo subjuntivo e indicativo. Eu e Austin temos bem vincado nos ombros algum passado, desde há muito. O que é feito das suas névoas, Austin? Conta-me delas.
Veja bem, premências e urgências, Austin. E a isto jamais me conformo. E os esforços são, enfim, ossos (ou ócios) de todo o(ri)fício: olhos e outros para-sentidos. Eu disse que riria em rimas, Austin. Eu disse e você não acreditou.

Eu tenho mesmo um vergalhão nos olhos, que Austin reconta. E ele deve ter os seus. Meus ombros evidenciam farrapos de nuvens. Exercícios para perceber sensivelmente e percebo que nada percebo. Arre, fora daqui Sócrates, vá beber deste cálice em outra parte.
Embora minha alegria e brumas, nos ombros pousam perspectivas de futuros, também certa cega indignação eu dou a quem quiser vir e ver.
OSSOS E ÓCIOS DOS O(RI)FÍCIOS
Com Austin apontam-se meus olhares torpes, pontos de vista borrados, e, eu soubera isto mesmo, latejariam outras nuvens nos ombros fossem os futuros já aqui. Mas não, Austin, sem futuros.
Além dos ombros, também os pontos de vista... sense et sensibilia... Atlas aperta os olhos e vê o mundo a despencar montanha abaixo. Eu apenas adivinho o som da queda e sigo. Às cegas na noite, entre as brumas da minha cegueira momentânea, o oráculo reconta-me:


SUI
O trovão no meio do lago
A imagem do SEGUIR.
Recolhe-se ao anoitecer
Descansa
Recupera-se

Troco de posição na poltrona. Eu vou mudar novamente de assunto.

Foco com os cristais que repousavam sobre o criado mudo (vidente agora). Tenho alguma dificuldade para me adaptar à visão monofocal. Mas é confortável viver a desilusão de ótica: a casa e a colher, memoráveis amores, são distantes. E Austin dispara:

nós nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos (ou 'sentimos'), ou, de qualquer maneira, nunca percebemos ou sentimos diretamente objetos materiais (ou coisas imateriais), mas somente dados dos sentidos (ou nossas próprias idéias, impressões, sensa, percepção sensível, perceptos etc.) (Sentido e percepção, 1993:9).
Sim, centrado nas minhas sensações visuais; além da presente rima pobre que agora dei de praticar.
Minha poltrona não é de todo confortável para ver, seja o próximo ou o distante, casa ou colher em amores. Afundado entre almofadas, ajeito a menor delas. Na mais compacta apoio as brumas dos ombros. A meu ver, repouso sobre seda verde o que permite um ver(de) mais intenso: e todo ver parece um modo de adoração profunda e algo arraigada. E, entrelaçado a Austin, recrio aparentes casa e colher.
A partir das brumas nos ombros, são sim pontos de vista e, igualmente, esforços bem críveis: meu ofício é o de pontos de fuga para a perspectiva de (pre)ver futuros. O olho no espelho não é não, nem alma nem só miragem, que não somos apenas Narcisos à margem de qualquer cristal, Austin. A nossa superfície lisa e lustrosa tem a profundidade mercurial, não o lodo. Metemo-nos na imagem para adivinhá-la, não para crer nela.
Os olhos são orifícios líquidos de olhar o mundo, não máquinas da memória. Resulta que o ponto de vista e a proximidade com o mundo e as coisas dele ou nele, de novo, brumas e esforços, prazeres na sensação de viver nos olhos.

Austin parece não conhecer as alegrias espontâneas que brotam das pedras que se escondem no jardim do templo de Kyoto. As coisa nem sempre se mostram, Austin. As alegrias do vivido, Austin, diz a oração de São Nietzsche, não traz paz ou visão. Estas precisam sim de serem tecidas com vistas à tecer a seda verde que faz as brumas dos ombros acomodarem-se nos dias presentes.
Austin, a alegria da casa e da colher, um quase futuro de olhar para além dos olhos e memória, nada visa. Casa e colher são tão só vazios preenchidos de ações.

A cabeça pesa novamente sobre a seda verde. Enterrada entre ombros outra vez mais as densas brumas não trazem paz. Apesar de olhos limitados, eu repouso as brumas sobre seda verde. Repouso, Austim mais que penso.
Focalizo sob os cristais monofocais a visão deste dileto Austin. Preocupou-se com os olhos. Com ele sou eu quem ganho olhos, ainda que curtos, bastante novos. Austin não segue. Eu não sigo entre as brumas dos ombros de Austin. Tenho brumas próprias.

Adivinhar meus olhos limitados lembra-me a lógica entre as coisas e os pontos de vista, que consta no dilema filosófico do crocodilo, desculpe-me a imprecisão, mas não consta que tenha havido autoria certa. Mas é ela assim:
Um crocodilo rouba um menino e promete ao pai deste restituí-lo, se o pai adivinhar o que o crocodilo fará; isto é, se lhe restituirá ou não o menino. Se o pai responde que o crocodilo não o restituirá, nasce para o crocodilo um dilema. Com efeito, se não o restituir, tornaria falsa a resposta do pai e cessaria o direito dele à restituição.
Sem ressentimentos pelos dias de cergueira ou brumas, Austin. A visão e as perspectivas que você apresenta à competência assemelham-se à lógica e ao dilema deste filosófico crocodilo. Um crocodilo não chora dilemas. Eles aperta glândulas ao bocejar e chora. Crocodilo lógico é apenas alegórico. A fábula que São Nietzsche conta, a respeito da águia, do lobo e do cordeiro, é mais instrutiva a respeito disto que você demonstra. Não a conhece? Pois bem, reconto breve: o ardiloso lobo negocia com o cordeiro, a águia devora. Outra hora eu reconto isto com mais (di)vagar. É uma fábula, Austin. Um simples ponto de vista: a lágrima que o crocodilo derrama e o sistema que ele apresenta redunda no que faz a águia nietzscheana: se cordeiros, nos devoram. Visão precisa e letal a desta águia. E ponto. Com a águia não há dilemas a solucionar.

Da janela de meus olhos, apesar das vistas reduzidas, ainda assim, as paisagens e o horizonte interessam-me em sensações fabulosas. Já que Austin ensinou-me que eu nunca vejo, mas sinto, neste domingo distraio-me com a ausência das lentes, entre os efeitos da refração da luz no fundo do meu olho. Tenho névoas óticas, porvir de superfícies esboroadas pelas brumas e bem evidentes estão meus ombros. Certa alegria meus olhos glandularmente lacrimosos permitem. Lágrima orgânica, não lógica, transcendental, sentimental ou de qualquer outro dilema, Austin. Choro à janela, deitado na confortável poltrona. Limitada acuidade visual, esforço-me para tentar o mais além das belles lettres à academia de Austin. E eu vou mesmo mudar de assunto.
Na agenda, além de dissipar nuvens dos ombros com mãos mágicas do massagista, na semana incluo encontro com o homem dos menores olhos do mundo. Ampliarei meu campo de visão sem mais chorar esforços pela refação das luzes dominicais. Faz anos que a tarefa de dizer-me, se eu vejo mais ou menos as coisas, entrego a ele, pois confio nos pontos de vista dele mais do que nos pequenos olhos do Tsutomo. E visitarei o polidor de lentes - digressão necessária, não parece coincidência São Spinoza ter o ofício de polir lentes: foi ele visionário.
uma pequena alegria
banhos de água fria
compressas vagarosas
essência de camomila
Há neblina em certas regiões. Esfumaçados o campo e o contra-campo. O próximo, evidente, guarda-se em brilho e lusco-fusco. As cores existem. As cores são refrações da luz na retina, nos bastonetes, no cérebro. Embora a bruma nos ombros não se dissipe, as cores são críveis, Austin. O mundo se borra em contornos nem sempre precisos. Difícil essa tarefa de ver com clareza e precisão. Muito difícil. Imaginarei outros olhos, ou empresto algum. Novamente, eu vou mudar de assunto.

Aquilo que pensamos ver, a qualquer momento, pode ser muito diferente daquilo que estamos na realidade detectando visualmente. Na verdade, vemos e sentimos muito pouco.

Cada nervo em nosso corpo está limitado a levar somente um tipo de sinal ao cérebro – ou se ativa, ou não. A velocidade do impulso pode variar de nervo para nervo, mas é fixa para cada nervo; a resposta é ‘tudo ou nada’. O impulso nervoso é relativamente lento: a taxa mais rápida, para algumas das fibras nervosas longas e espessas que percorrem muitos centímetros pelo corpo, é de talvez 300 pés por segundo (91,437m), mas os nervos menores, tais como aqueles do sistema visual e cérebro, transmitem somente a um décimo desta velocidade. (Smith. Compreendendo a leitura. 1989)
Os profissionais da visão jamais deveriam se aposentar ou se distrair-se, nem nos finais de semana. Parece esta atividade ser mais ofício que profissão. Oficiais da visão, se movidos pela mística que nos empresta olhos para ver o mundo, não como ele é, mas como ele nos aparece, deveriam se esgotar apenas na morte. Esta sim, a morte, dizem enxergar à distância como jamais houve alguém.
No meu asilo de silêncios, as falhas de um lado, os olhos e ombros e brumas de outro. Estão oráculos e videntes que arrefecem bruma e cegueira aqui mesmo, nesta poltrona. Sim, prezado Santo Agostinho, exegética é a minha leitura dominical. Nela busco exemplares raros de alegrias dos videntes, novamente, mudando de assunto.

Primeiro encontro a VII parte d’As três emoções básicas, do redentor São Spinoza, na passagem as emoções ativas:

Todas as emoções se originam da satisfação, do desejo, ou da tristeza. Porém, entendemos por tristeza aquilo que pode diminuir ou reduzir a potência da alma, e assim, enquanto a alma está contristada, sua potência de conhecer, quer dizer: de agir, está diminuída, ou contrariada. Não há pois emoções de tristeza que possam se relacionar com a alma, enquanto é ativa, senão somente as emoções de alegria e do desejo
Depois, revejo as mãos brancas do Borges na Biblioteca Pública de Buenos Aires, a tatear lombadas de livros. Ao revê-lo no labirinto eu aceno um olá tímido. Novo brilho no olhar, mas ele é cego à minha presença. Busco as mãos dele em meio ao silêncio da biblioteca. Na penumbra das perspectivas, escuto o murmúrio de alguém que para ele lê em voz trêmula um trecho da introdução que ele mesmo fez para a sua A Rosa Profunda, de 1975; é a tradução da bela Josely Vianna Baptista. Adivinho o papel em sombra amarelada e cheiro de tempos, mas atento ao trecho:
A cegueira é uma clausura, mas é também uma libertação,
uma solidão propícia às invenções, uma chave e uma álgebra
Mais uma vez recosto-me na minha sala de ampla janela e preparo um receituário para domingos suportáveis:
1. Reler o trecho d'O ensaio sobre a cegueira na edição bilíngüe, em que as mais letras são as mais miúdas do Saramago;
2. Alegrar-me novamente, ainda hoje, com a presença do Pessoa, no texto de 13-11-1935 em que, ao ver tal enigma em si, numa mesma luta, de ver o perto demais, o dentro e o fora ele viu em versos, e escreveu:
VIVEM em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Que é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se pensa ou sente.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os.
Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
Este trabalho de ver e dialogar com Austin, Spinoza, Borges e Pessoa, não me deu um pingo de trabalho.
Vez ou outra, pouco importa mesmo se chega o dia, se o vemos ou não. A distância entre ver, estar próximo e atentar-se ao que é distante pouco importa. Isto se bem acompanhado. Dou olhos ao dia e sendo ele um desses infindos, jamais finda ou inicia a semana, e lento eu exercito, meio às cegas, olhar os pontos de vista. Isto faz brumas em qualquer ombro serem mais tênues e novos olhares brotarem.

A respeito deste meu viver distraído que, mesmo cedo, faço-me um cego em pequenos regozijos, mais uma álgebra agora, um desafio: quantas tentativas para ver à distância, entrevejo, se as evidências são sempre proximidades aparentes.
Em tempo, urge renovar óculos e ócios.

*

31.12.06

25.12.06

Natalício


25 de dezembro,
lembro-me bem,
manchete em todos os jornais:







Manhã de Natal
Ano em que Sartre partiu
Nenhum novo palhaço
O mundo perde a graça
Morre Chaplin,
o anti-herói do século XX.

"Rir da morte é morrer de rir?" Liberati

*
James Brown



I Feel Good

Whooooau! I feel good, I knew that I would, now
I feel good, I knew that I would, now
So good, so good, I got you

Whoa! I feel nice, like sugar and spice
I feel nice, like sugar and spice
So nice, so nice, I got you

When I hold you in my arms
I know that I can't do no wrong
and when I hold you in my arms
My love can't do me no harm

and I feel nice, like sugar and spice
I feel nice, like sugar and spice
So nice, so nice, well I got you

Whoa! I feel good, I knew that I would, now
I feel good, I knew that I would
So good, so good, 'cause I got you
So good, so good, 'cause I got you
So good, so good, 'cause I got you
*


*

Aristóteles & Platão

*
Poética, Aristóteles

*

24.12.06

Decifro-me: eu devoto


*
Horas
-
Tantas vezes sonhei-me imagem.
Em outras, pensei-me metáfora.
Tantas, signo de algum além.
Mas foi um desaforado e divino,
desses que perambulam aqui,
que fez cair a primazia
dos dias de transcendência.
-
Faz calor e chove.
Haja ou não nuvens,
eis que haverá sempre
trinta e tantos dias.
-
Qual Jorge sobre o cavalo
e lança em punho,
desfiro golpes da sorte
ao ritmo de distrativas horas.
Se elas se esvaem
eu nada sei ou sinto.
As horas são,
não se formam,
mas me constituem.
-

*
-
Ao amigo de horas distraídas, que prenunciam segredos cifrados, meu carinho nas palavras do Gullar.
-
*

Traduzir-se

Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é questão
de vida ou morte _
será arte?

*

18.12.06

m.o.r.t.e a.r.t.e.f.a.t.o

*

Sapatos definitivos,
goma branda na face.
Rumo a lugar algum,
mortes vividas sonho.

Visto festa solene,
Cheiro à cipreste,
Lacrimejo parafina,
Alguidar é meu corpo vazio.

Janela sem paisagem,
Réquiem à minha memória,
Réplicas carpideiras,
Perpétuas florescem nos pés.

*

eu tomo aqui palavras trocadas, emprestadas, ou seria parceria. Sensível habilidade, ao Francis eu agradeço.

*

e abriu

*
sim, foi abril, em 2006

*
Photo de Thomas Kaufmann
Puppet Mauro Rodrigues
*

plus + plus

Vanity!

*
Vezes sem fim, calar não é fácil. Dizer nada muda, já o sei. Toda poeira de verbos recobre precipícios, veredas ou mesmo veleidades. Não há modo diverso deste, mais detestável, feito canhestro de tantas palavras, mesmo em mim, almeja silêncios.

*

05/ de dezembro, temp(l)o de silêncios:
Cálice de letra por vir.
Palavra tanta, toda e outra a mais.
Estado sutil, sensação num quase verbo.
Na forma falha tamanha,
Brecha sem fim
Que foi assim que daqui sumi.

*
(às flôres intermitentes de maio)
curva (inter)rompida
devolve móveis
esquece baús
troca chaves
fecha portas
guarda lacres
bebe vergonhas
enfrenta quedas

*

( seria já um junho ido, findo)
Na infância havia a chuva, bijú de lata, catraca e matraca a romper silêncios nas tardes e noites sem fim.
Na infância havia, mesmo com dor de dente, doce de coração, suspiros amarelos, rosas e azuis brocados com gotas de prata e luar a não perder mais.
Na infância havia, mesmo à noite, pé na lata, mãe da rua e esconde-esconde nos terrenos baldios dos troca-trocas e segredos e risos em noites descobertas.
Na infância, mesmo que fizesse frio, havia toalha com água umedecida para banho morno com alfazema.
Na infância havia inverno, goteiras nas latas, franjas da casa com orquestra de tatibitati de tantos chuviscos.
Na infância havia cigarra, apesar de todo adulto, nas árvores de todo verão
Na infância havia o que mais haveria.

*

17.12.06

Tina apenas para íntimos





Tina em certos olhares
Tina em certos lugares
o indomável animal

13.12.06

A complicada arte de ver

"O OBSERVADOR"
argila 55x15x15cm
*


Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões — é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode àCebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos eos rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda asua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do"terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa — garrafa, prato, facão — era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas — e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves
O texto acima foi extraído do caderno "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo",versão on line, publicado em 26/10/2004.


*

12.12.06

Kaváfis

*
Konstandinos Kavafis ou Konstantínos Kaváfis

* Alexandria, 29 de abril de 1863

+ Alexandria, 29 de abril de 1933

poeta morre no mesmo dia em que nasce


Viagem a Ítaca


Quando começares a tua viagem para Ítaca,
reza para que o caminho seja longo,
cheio de aventura e de conhecimento.
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon:
Nunca os encontrarás no teu caminho
enquanto mantiveres o teu espírito elevado,
enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito e o teu corpo.
Nunca encontrarás os Ciclopes ou outros monstros
a não ser que os tragas contigo dentro da tua alma,
a não ser que a tua alma os crie em frente a ti.

Deseja que o caminho seja bem longo
para que haja muitas manhãs de verão em que,
com quanto prazer, com tanta alegria,
entres em portos que vês pela primeira vez;
Para que possas parar em postos de comércio fenícios
para comprar coisas finas, madrepérola, coral e âmbar,
e perfumes sensuais de todos os tipos -
tantos quantos puderes encontrar;
e para que possas visitar muitas cidades egípcias
e aprender e continuar sempre a aprender com os seus escolares.

Tem sempre Ítaca na tua mente.
Chegar lá é o teu destino.
Mas não te apresses absolutamente nada na tua viagem.
Será melhor que ela dure muitos anos
para que sejas velho quando chegares à ilha,
rico com tudo o que encontraste no caminho,
sem esperares que Ítaca te traga riquezas.

Ítaca deu-te a tua bela viagem.
Sem ela não terias sequer partido.
Não tem mais nada a dar-te.

E, sábio como te terás tornado,
tão cheio de sabedoria e experiência,
já terás percebido, à chegada, o que significa uma Ítaca.



*

en español